quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Capítulo XIX



Já era de madrugada, quase quatro horas e Hanz sentado ao computador nada digitava. O som estava desligado, fato bastante incomum, Brutus passeava livremente pelo interior da casa pois a porta da cozinha que estava aberta assim o permitia.
     Olhar fixo na tela do computador, mas o pensamento estava distante, tentando resgatar os detalhes daquilo que havia sido muito mais que um pesadelo para ele. Aquilo tudo havia sido uma espécie de aviso pois as sensações que ele lhe imprimira não haviam desaparecido com o seu despertar. As palavras de seu pai e a mensagem contida no bilhete ainda ecoavam em sua mente e em seu íntimo.
     “Parece que alguma coisa importante está para acontecer e querem me avisar sobre isso. Mas está muito confuso, não consigo entender aquilo tudo, mas seja lá o que for eu tenho que descobrir pois sinto que pode mudar muita coisa.” -  pensava ele lendo o que havia digitado, as mensagens que lhe haviam sido passadas.
     Brutus o retira de seus pensamentos lambendo sua mão e ele se dá conta do horário.
     - Por hoje chega, estou até vesgo de sono, parece que não adiantou nada dormir de tarde, continuo exausto. Melhor ir dormir direito e amanhã eu penso nisso tudo com mais calmo e descansado. Vamos Brutus, você já bagunçou muito aqui dentro, pra fora.
     Hanz levou seu companheiro para o quintal e aprontou-se para dormir ainda preocupado, não só por saber que precisava decifrar as mensagens como principalmente porque dentro de algumas horas teria que retornar àquele inferno que se tornara o local onde trabalhava, sendo assim, teria que colocar suas horas de sono em dia.
     Como estudioso dos fenômenos espíritas ele sabia que era perfeitamente possível a comunicação entre planos físicos e espirituais e isso fazia com que tivesse ainda mais certeza de que aquele sonho tratava-se disso, alguém do outro plano tentando passar-lhe alguma mensagem.
     Até então ele jamais havia sonhado com seu falecido pai e se isso havia acontecido naquelas circunstâncias não devia ter sido à toa.
     Havia muita simbologia naquele sonho, disso ele tinha certeza, só não havia ainda conseguido encaixar as peças para entender do que se tratava.
     O pouco que restava da noite prosseguiu de forma normal, mas o dia que se seguia ainda lhe reservava algumas surpresas.
     Os latidos de Brutus no portão denunciavam que havia alguém no portão e o soar da campainha veio a confirmar isso.
     - E aí Renzo, tá perdido por aqui cara? – cumprimentou Hanz  indo abrir o portão e desvencilhando-se de Brutus que pulava sobre ele querendo brincar.
     - Ah, mais ou menos fiu, tô precisando bater um papo com você, não dormi legal não.
     O rapaz percebeu que o amigo não estava bem e deu o comando para que Brutus sossegasse, o fato do cão ser adestrado era bastante útil. Renzo mostrava não estar disposto a brincar naquele momento, fato bastante incomum pois ele adorava o cachorro.
     Assim que se acomodaram na sala não perderam tempo em entrar logo no assunto.
     - O que aconteceu Renzo? Parece que você não dormiu nada meu, conta aí o que foi...
     - Pior que não dormi mesmo fiote, tô quebradão. Olha, tô com um negócio martelando na minha cabeça fiu, talvez seja besteira, mas não me sai da cabeça.
     - Sei como é isso, mas o que tá preocupando você?
     - Olha, é o seguinte: eu cheguei do trampo umas cinco e meia como sempre, tomei um banho e fui deitar, pretendia dormir, e sempre quando começava à cochilar eu ouvia uma voz sussurrando assim “A luta é para lutadores, a guerra é para soldados”. Daí eu dava um pulo e despertava procurando de quem era aquela voz mas não encontrava ninguém. Eu achava que era tipo o começo de um sonho porque eu estava quase dormindo, mas a mesma coisa aconteceu umas três vezes e eu desisti de dormir. Eu nunca tive medo de fantasmas ou dessas coisas assim, mas porra fiu, aquilo me deixou apavorado. O estranho é que mesmo depois que eu desisti de dormir essa frase ainda ficou na minha cabeça como se fosse uma música que a gente gosta e sem querer se pega cantarolando sabe como é?
     Hanz nunca tinha visto o amigo daquele jeito, o que ele lhe contara parecia realmente estar atormentando ele.
     - É, deu pra entender, mas por que isso tá te incomodando tanto? O que você acha que pode ser? – Hanz parecia já compreender o que se passava mas queria que o amigo tirasse suas próprias conclusões.
     - Sei lá fiu, na boa, acho que tem alguma coisa a ver com o que andamos fazendo. Vim falar com você porque sei que estuda essas coisas e tal e imaginei que você poderia me explicar o que é isso. Eu fico com medo, sei lá porquê. Não sei se é medo da forma como ouvia a voz, por imaginar ser alguma coisa sobrenatural, ou medo do significado que essa mensagem pode ter. O que você acha que pode ser fiote? – o grandalhão parecia compreender mas ainda assim estava aterrorizado.
     Hanz pensou um pouco antes de prosseguir com a conversa.
     - Como assim? Você acha que querem te avisar sobre alguma coisa?
     Renzo pensou um pouco, parecia hesitar um pouco em responder pois sabia que as conclusões que já havia tirado da mensagem possivelmente não agradariam os membros do grupo, mas mesmo assim respondeu.
     - Olha fiu, você sabe que eu tô totalmente de acordo com o que temos feito e que isso que tô te contando pode até soar como uma desculpa para tentar pular fora do esquema, mas levando em conta o que a tal voz me disse eu não deveria me envolver com essas coisas entende? Mas eu não quero sair não fiote, e por isso vim te contar isso tudo, porque sei que você estuda essas cosias e sabe que essas coisas acontecem mesmo, que não estou inventando desculpa não.
     - Tudo bem Renzo, não esquenta, eu sei que você não inventaria essas coisas meu, se você quisesse sair fora sairia e boa, sem desculpas. Desde que você me contou eu já havia tirado a mesma conclusão a respeito do que a voz disse, só queria saber qual conclusão você tinha tirado. Agora, a decisão é sua, você que tem que saber o que quer meu, fique a vontade para decidir o que vai fazer. – disse mansamente Hanz para tentar tranqüilizar o amigo. Ele entendia bem o que se passava na cabeça de Renzo pois o mesmo acontecia com ele por causa do estranho sonho que tivera.
     O amigo ficou pensando nas palavras de Hanz enquanto este foi até a cozinha buscar algo para comerem.
     “Eu nunca tive dessas coisas, na verdade nem acreditava que realmente acontecessem porque nunca tinha experimentado nada do tipo, mas essa voz me impressionou muito, é muito estranho... Foi como ela disse:” “a luta é para lutadores e a guerra para soldados”, e eu sou um lutador, não sou um guerrilheiro nem nada do tipo... Na verdade ela tem razão no que ela disse, mas como eu vou largar meus amigos agora? Seria uma sacanagem com eles. Droga, por que essa voz não me avisou antes de eu me envolver? Agora já é tarde demais porra, já tô muito envolvido nisso tudo.” – raciocinava Renzo sobre qual decisão deveria tomar.
     Hanz não demorou muito, estava ansioso por saber qual decisão o amigo tomaria pois de certa forma sua própria decisão dependia um pouco da dele, mas não demonstrou isso em nenhum momento.
     - Vamos comer alguma coisa meu, eu sei que você não raciocina bem de barriga vazia. – o rapaz tentava disfarçar seu próprio nervosismo.
     - Bom, isso é verdade fiote, não há nada melhor do que comer. – concordou Renzo rindo.
     Iniciaram o lanche em silêncio, ambos ainda pensativos, e Renzo prosseguiu.
     - Olha fiu, nós começamos isso tudo e vamos com isso até o final agora. Não vai ser uma voz que nem sei de quem é que vai fazer com que eu mude meus planos. Não vou deixar ninguém na mão não.
     Hanz olhou-o bem sério e após engolir continuou.
     - Bom, eu respeito a sua decisão Renzo. Mas olha, já que confiou em mim para contar essa história eu também vou te contar uma que infelizmente pode te abalar ainda mais...
     Renzo arregalou os olhos, engoliu seco mas não perdeu o humor de sempre, parecia já estar mais calmo.
     - Ué fiote, fala aí. Vai dizer que Jesus Cristo apareceu pra você e disse pra parar de explodir coisas? Ah, pior, vai dizer que você engravidou a Tati e vai casar com ela para formarem uma tradicional família pacata que não se envolve com terrorismo, é isso?
     Hanz não pôde deixar de achar graça nas palavras do amigo.
     - Puts meu, fica quieto porra. Ouve direito o que vou te dizer e você vai entender...
     Hanz então contou ao amigo sobre o sonho que tivera, provavelmente omitindo centenas de detalhes pois normalmente assim acontecem com os sonhos, após algumas horas eles são apagados da mente. Mas ainda assim o que Hanz relatara ao amigo foi o suficiente para deixá-lo atônito.
     - Porra fiote, se uma simples frase me deixou perturbado eu imagino como você deve estar...
     - É, não tá fácil não meu. As imagens, os sons... tudo volta à minha mente a todo instante, não por completo, mas como em flash´s. Parece uma tortura.
     - Será que isso não é consciência pesada fiu?
     - Não Renzo, acredito que não. Até agora ninguém se machucou nisso tudo, não há motivos pra isso. Com certeza o que está acontecendo com a gente é exatamente o que estamos imaginando e lutando para não acreditar.
     Ambos ficaram pensativos por um breve instante.
     - E o que você pretende fazer fiote?
     - Tô na mesma que você meu, não é justo pular fora do barco no meio da viagem, vamos ver que caminho ele vai seguir. Talvez eu esteja fechando os olhos para o que meu pai quer me mostrar, mas sei lá, não vou desistir não, vou contigo meu, vamos seguir em frente.
     - Beleza fiu, mas não vamos espalhar isso certo? O pessoal é meio cabecinha pra esse tipo de coisa, eles não entenderiam, provavelmente achariam que estamos inventando uma desculpa pra cair fora do grupo.
     - É verdade, eu ia manter em segredo o meu caso, só te contei porque você confiou em mim para contar o seu caso...
     Renzo fez um sinal de agradecimento com a cabeça, ainda estava transtornado com o fenômeno, jamais imaginava que algo do tipo pudesse acontecer com ele.
     - Olha fiote, e quem garante que o mesmo não possa estar acontecendo com eles também e ninguém fala nada?
     - É verdade, isso não tem como a gente saber.
     - Cara, eu nunca imaginei que esse tipo de coisa pudesse acontecer comigo fiote. Nunca acreditei muito mesmo conhecendo você e vendo o quanto você leva a sério essas coisas, mas sei lá, é o tipo de coisa que a gente imagina que só pode acontecer com os outros saber como é?
     - Sei sim meu, durante algum tempo eu também pensei assim até começar a participar do grupo de estudos de um centro espírita que eu freqüentava, daí meu modo de encarar esse tipo de coisa mudou. Mas não fica preocupado não Renzo, não tem motivo pra ter medo não.
     - É, eu acho que não tem mesmo. É aquele negócio fiote, as pessoas têm medo do que lhes é desconhecido. Quando começam a entender elas percebem que o medo é fruto da ignorância, só isso...
     Hanz já sorridente com a forma do amigo encarar o assunto apenas concorda com a cabeça.
     Ambos deixaram de lado um pouco o assunto, permaneceram silenciosos saboreando o lanche que Hanz havia preparado, absortos em seus pensamentos.
     - Fiote... descobri uma coisa que vai te interessar muito...
     - Hum... e o que seria?
     - Eh, eh. Fontes me disseram que o sargentão Jean já andou se enroscando com sua amada Tati uns tempos aí, mas que agora parece que são apenas amigos...
     - Corta essa de amada meu, já cansei de te falar que não tem nada a ver essas idéias suas. Eu só acho ela atraente cara, aliás, você também acha.
     - Bom, isso é verdade, ela é jeitosinha mesmo. Mas então, o caminho parece que tá livre pra você fiote, não perde tempo não. O que você tem a perder fiote? Você tá sozinho mesmo...
     - Beleza meu... valeu pela informação, vou pensar no caso. – finalizou Hanz sem deixar demonstrar muita empolgação embora sei coração estivesse com seus batimentos um tanto fora do normal.
     Renzo decidiu mudar de assunto pois sabia que falar sobre Tatiana deixava Hanz de mau -humor.
     - E o trampo como que é que tá fiote?
     - Puts, nem me fala meu. Um saco. É muito diferente trabalhar na capital e no interior, mesmo na mesma empresa. A mentalidade das pessoas é muito diferente meu. Sei lá, eu acho que falta profissionalismo nas pessoas entende? Acho que por a cidade ser pequena rola muito coleguismo na empresa. Pô, o encarregado vê as coisas erradas, sabe que tem muita coisa errada e ainda assim não faz nada meu, mesmo essas coisas prejudicando financeiramente a empresa, eu não entendo isso...
     - Vai ver ele tira alguma vantagem nisso fiote.
     - Não, nem é isso não meu. O que acontece é o seguinte cara: cada um tem sua cota de trabalho mensal certo? Tem um dia estipulado para que o movimento do mês seja entregue, não pode haver atraso. Não que eu seja melhor que os outros o que esteja querendo dar uma de gostoso, mas eu consigo fechar minha cota na boa, até antes da data, nunca precisei fazer hora-extra nem nada, só que lá ninguém fecha no dia se o chefe não liberar hora-extra entende? Cara, tem gente lá que chega a ir trabalhar até de sábado pra dar conta cara. Agora fala pra mim, isso é incompetência pura não é?
     - É, porque se as cotas são equivalentes não tem como explicar o fato de você fechar tudo em dia e eles não. Mas pô, o chefe realmente tinha que ver isso. Ou será que ele não sabe?
     - Claro que sabe meu, ele é quem libera os caras pra fazer hora-extra. Outro dia numa reunião que teve entre eu, ele e mais um outro funcionário lá eu mencionei esse fato, disse que era ridículo manter na empresa funcionários que enrolavam o serviço só pra fazer hora-extra, sabe o que ele teve coragem de me falar? Que deixava o pessoal fazer hora-extra pra ajudar um pouco no salário deles porque é muito baixo...
     Renzo ficou indignado.
     - Ah fiote, sério? Você tá me zoando né?
     - Nada meu, ele disse isso mesmo, me deu vontade de falar um monte pra ele. Mas o pior você não sabe cara: quando eu termino minhas contas antes do prazo ele ainda manda eu ajudar os outros a terminarem, nossa, dá vontade de levantar na mesma hora e sumir de lá.
     - Puts fiote, o que que é isso? Quer dizer que você ganha menos que eles, já que não faz hora-extra, e trabalha mais porque fecha a sua cota e a deles?
     Hanz confirma com a cabeça.
     - Nossa... que chefe escroto esse seu heim... Eu não serviria pra trabalhar num lugar desses cara.
     - Não é a toa que eu tenho ido praticamente arrastado trabalhar meu. Eu lá trabalhando o dia todo, na boa, e ouvindo os outros batendo papo e dando risada o dia todo? Porra!!! E no final ainda ter que fazer o trabalho dos caras porque o chefe vê isso e não faz nada? Nossa... não dá não meu...
     - Você precisa é arrumar outro emprego cara, dá um jeito de sair de lá e mandar aquele povo todo pro inferno.
     - E você acha que eu não sou louco pra fazer isso? O problema é que é difícil ter emprego nessa minha área aqui na cidade, e quando tem, é pra ganhar quase a metade do que eu ganho...
     - Daí fica complicado mesmo fiote. O jeito é você continuar lá na boa, na sua, enrola seu trabalho e entrega no dia certinho cara, assim você não tem que fazer o serviço dos outros.
     - É o que eu tenho feito meu, mas porra, é uma situação ridícula, eu ter que diminuir meu rendimento pra não ser prejudicado ao invés do encarregado pegar no pé do pessoal pra aumentar o deles?
     - Realmente esse seu chefe aí merece uns chutes bem no meio da cara, isso sim... é fogo cara, ainda bem que no meu trampo não tem isso fiote.
     - Você que é sortudo. Na capital até tinha essas coisas, mas não era tão gritante como aqui...  
     Os dois terminaram o lanche e conversaram mais um pouco mas como Renzo havia combinado de sair com Bianca ele não demorou muito para ir embora deixando assim Hanz livre para suas atividades rotineiras pelo resto do dia.
     Por volta das vinte e duas horas Cibele ligou-lhe à procura de Paulo, que segundo ela, havia saído à tarde e ainda não retornara.
     Cibele estranhava a atitude do companheiro pois ele nunca desaparecia daquela maneira, principalmente sem dizer para onde iria.
     Hanz infelizmente não pôde ajudá-la em nada pois desde a última reunião não tinha notícias do rapaz, mas ofereceu-lhe apoio no caso de ela precisar de alguma coisa.
     O restante da noite foi normal, com aquele costumeiro desânimo que se apossa das pessoas nos finais de domingo devido ao início de mais uma intensa semana de trabalho que está prestes a se iniciar. 

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