O êxodo rural levou milhares de famílias a abandonarem o campo em busca de melhores oportunidades nos centros urbanos, até mesmo pessoas de outras partes do país migraram, principalmente, para a região sudeste atrás desse mesmo sonho. Tudo isso trouxe muito desenvolvimento a esses centros urbanos, sobretudo às capitais, mas com o passar dos anos os fatores negativos dessa migração começaram a se manifestar. O desemprego, a violência, o crescimento desordenado e o conseqüente stress sofrido por muitos moradores dessas grandes cidades começaram a fazer com que muitos passassem a fazer o caminho inverso.
É baseado em todo esse contexto que
encontramos Hanz Nachbar em seu carro, de mudança para uma cidade bem mais
tranqüila do interior.
Enquanto
percorre a longa estrada o rapaz de vinte e seus anos reflete sobre sua
decisão.
“Finalmente consegui realizar meu sonho. Se
Deus abençoar tudo dará certo, e ele vai abençoar, com certeza. Agora é vida
nova, aquilo na capital não é vida de gente não, só se vive pro trabalho, não
se tem tempo pra mais nada, não é vida não. Agora é só chegar na casa do pai, arrumar
as coisas e pronto, vida nova!”
É admirável a capacidade de Hanz: dirigir,
pensar e ouvir heavy metal quase no último volume, tudo ao mesmo tempo. Mas
esse é seu estilo musical preferido, portanto não seu pensamento, ao contrário,
até o ajuda. Mas o rapaz não faz o estilo metaleiro, não tem cabelo comprido,
tatuagens ou piercings. Na verdade, a primeira vista, nem se imagina que esse
seja seu estilo preferido. Mas ele procura ouvir um pouco de tudo, embora não
goste de tudo o que ouve, tendo assim um vasto conhecimento não apenas musical,
mas de vários assuntos. É um rapaz bastante culto.
Mas a aparente felicidade esconde um pouco de
tristeza que ele carrega na alma.
Hanz está se mudando para o interior e vai morar na casa do seu pai que
falecera há alguns meses. Esse não é o fato que lhe dói tanto, mesmo porque não
havia um forte relacionamento entre eles já que seus pais eram divorciados a
bastante tempo e também devido a religião que ele seguia, o kardecismo, que lhe
dava base para encarar a morte de uma forma bastante serena. Morte não, como
diria o próprio Hanz, mas sim desencarne.
Talvez o que mais o incomodasse na verdade
fosse o fato de haver deixado sua mãe e seus dois irmãos na capital pois sabia
que sentiria saudade deles e também por ser o primogênito sentia-se na
obrigação de ser o apoio da família, como sempre o fora, desde o afastamento de
seu pai.
Infelizmente
o único disposto a abandonar a cidade grande fora ele, cada um tinha seus
motivos para não deixar a cidade, mas Hanz seguiu uma antiga vontade sua e
partiu para uma vida mais calma.
Era
como se algo lhe dissesse que alguma coisa muito importante esperava por ele
naquela cidade, como se ela fosse seu verdadeiro lar. Não sabia bem como
explicar esse sentimento e resolveu pôr um fim nessa angústia.
Mas
a verdade era que ter um lar para poder viver sozinho também o agradava e essa
era uma oportunidade única que tinha, a casa de seu falecido pai, que
certamente seria vendida caso não tivesse resolvido a morar nela.
É
claro que houve muita relutância por parte da mãe quanto a essa mudança, mas
nada foi capaz de fazê-lo voltar atrás, e agora ali estava ele, a não mais que
uma hora de chegar à cidade que nada tinha de desconhecida pois muitas vezes
ali foi passar suas férias desde os tempos de escola.
Hanz,
como que para afastar os pensamentos tristes, aumenta um pouco mais o volume do
rádio enquanto acelera rumo àquela cidade tão almejada.
Já era início da noite quando o carro fez a
conversão à direita que dá acesso à avenida de entrada da cidade.
Hanz até diminui o volume do som diante da
emoção.
-
Puts, essa cidade é linda, Deus queira que isso não mude nunca, essa imagem
nunca me saiu da cabeça, só ele sabe o quanto eu sonhava em vir morar aqui.
Realmente a tal avenida era bela, bastante larga, com duas mãos de
sentido separadas por um canteiro por vezes florido e em outros locais
arborizado, iluminada por altos postes onde o frio torna presente uma leve
neblina dando um ar delicioso àquele verdadeiro hall de entrada da cidade.
Uma
nostalgia enorme se apossa da alma de Hanz que tantas e tantas vezes
presenciara essa imagem em sua infância quando vinha a passeio aproveitando as
férias escolares. Na companhia dos irmãos, quando passavam algumas semanas com
o agora falecido pai.
Conduzia seu carro pela direita, velocidade
tranqüila, saboreando aquela visão: as lanchonetes que iniciavam seu movimento
com o cair da noite, algumas de redes famosas, outras mais simples, lojas de
carros, imobiliárias... E logo no início da avenida, à esquerda, no alto de uma
ladeira estava o shopping da cidade, já cercado por edifícios que até alguns
anos atrás não existiam. Ao longo da avenida duas praças bastante peculiares
eram o “point” da pequena cidade, uma à direita com uma bela obra de arte ao
centro, cercada por trailers de lanches que faziam a festa dos freqüentadores.
Pouco mais à frente, agora à esquerda, uma gigantesca área gramada, num nível
mais baixo que a avenida, levava a um anfiteatro todo cercado por um grande
lago artificial, pelo horário todo escuro e vazio, mas que era palco de shows e
servia para os jovens também ali se reunirem.
Hanz
viajava naquilo tudo, saboreando cada momento, casa recordação...
De repente seu sonho termina e ele é trazido à
realidade por uma sirene que soa atrás dele. Ao verificar do que se trata
reconhece uma viatura policial, que se emparelha com seu carro.
-
Algum problema meu jovem? – indaga o policial no banco do carona.
- Nenhum problema, policial. Estava apenas
apreciando a cidade, desculpe a baixa velocidade.
- Tudo bem, sem problemas, já verificamos que
você não é daqui. Só pedimos que fique atento e tome cuidado, a avenida mais a
frente fica meio barra pesada.
- Valeu pela dica, mas vou entrar no primeiro
viaduto, acho que até lá é sossegado.
-
Tsc, tsc, negativo. Pelo jeito você não conhece direito a cidade, a parte de
prostituição começa já no próximo quarteirão e você com esse carrão chique e
placa da capital, sugiro que tome cuidado.
Hanz
fica visivelmente desapontado e o policial parece perceber isso.
- É colega, as coisas na cidade mudaram,
melhor você andar mais precavido.
- Pode deixar, não vou me esquecer disso,
obrigado.
- Ok, se cuida jovem. – despede-se o policial
sinalizando para que a viatura siga adiante.
“Poxa, parece que as coisas não são mais tão sossegadas como
antigamente. Como a cidade pode mudar tanto nesses... puts, sete anos!! Nem me
dei conta de que fazia tanto tempo que não vinha pra cá... caramba...”
Hanz fica visivelmente aborrecido,
principalmente ao constatar que tudo o que fora dito pelo policial correspondia
à verdade, a quantidade de prostitutas nos próximos quarteirões era grande,
associado à presença de travestis, michês e elementos bastante mal encarados.
Aumentando o volume do rádio para recuperar a
empolgação e sobe o acesso ao mencionado viaduto, onde, já fora daquela larga
avenida, as coisas parecem mais calmas.
À medida que vai se aproximando do seu novo
lar, já em seu bairro, percebe o quanto as ruas ficam vazias com a recém
chegada da noite, principalmente no período mais frio do ano, quando a cidade
parece estar deserta.
Apenas nas áreas de maior badalação pode-se ver algum movimento de
jovens, o que pôde comprovar no trajeto até sua nova casa.
Na sua rua não se percebe viva alma, nem a
turminha animada que varava a noite na época de sua juventude se faz mais
presente. As coisas mudam... com exceção dos morcegos que perambulam de árvore
em árvore em busca dos frutos dos quais se alimentam.
A rua de um único quarteirão é bastante
aconchegante, limitada por duas ladeiras, tornando-a ainda mais deserta pela
ausência de carros que poderiam passar por ali, mas não o fazem por ser ela
bastante escondida e por não dar acesso a nenhuma via principal.
Mais uma vez ele volta a relembrar dos tempos
em que aquele quarteirão era palco de inúmeras brincadeiras dele, de seus
irmãos e amigos, mesmo na época mais fria do ano como aquela. Mas agora, a rua
estava deserta, ainda mais deserta do que as demais daquele bairro residencial.
Hanz adentra pela garagem, já guardando seu
carro, e começa a arrumar suas coisas para transformar o que fora o lar de seu
pai no seu mais novo refúgio.
Pretendia ali construir uma nova vida, ao
menos esse era seu objetivo desde o dia em que tomara a decisão de mudar-se
para lá.
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