Aquela cidade
possuía um clima de extremos, não havia um meio-termo, nas épocas mais quentes
o calor escaldante acompanhado pela ausência de brisas fazia com quem os menos
acostumados transpirassem em bicas e nas épocas mais frias a baixa temperatura
somada à fina garoa que costuma cair noite e dia parecia congelar a todos.
Dificilmente haviam dias de temperatura mais amena, era raro que isso
acontecesse.
Menos mal para Hanz que talvez devido à sua
genética européia parecia não sofrer muito nas baixas temperaturas, mas em
compensação no verão a moleza que o calor trazia fazia com que ele saísse de
casa somente em último caso.
Mas Hanz não era muito adepto de passeios, preferiu sempre o aconchego
do lar, e principalmente agora que tinha uma casa organizada a seu gosto
dificilmente ficava fora de casa quando não estava trabalhando.
Haviam se passado pouco mais que duas
semanas e sua casa já estava organizada da maneira que sempre sonhou. Apesar
dos móveis serem todos do seu falecido pai ele havia transformado a casa da
maneira como sempre desejou, mudando a disposição dos móveis e trocando um
elemento ou outro da decoração para dar um ar mais jovial. Trouxera somente seu
computador, roupas, seu aparelho de som, cd´s e livros, pois o restante todo da
mobília fora deixado na casa. Especial atenção fora dada ao quarto destinado ao
seu computador, onde ficavam também as estantes com os livros que utilizava em
seus estudos, era seu local preferido da casa onde passava horas e horas
desligado do mundo.
As
coisas corriam conforme o esperado, estava aproveitando seus dias de folga
antes de concretizar sua transferência no trabalho para usufruir da nova casa e
organizar as coisas em geral, mas já experimentara alguns dissabores como o tom
de indiferença com o qual seus “amigos” de infância o tratavam. Não que ele
fosse carente ou inseguro, muito pelo contrário, mas talvez pelo tempo em que
estiveram separados e pelo fato de agora estar morando sozinho e próximo a eles
Hanz esperassem um pouco mais de atenção.
Um ou outro esforçava-se um pouco mais para
demonstrar que a suposta amizade existia, mas no fundo ele percebia que não era
algo tão espontâneo como ele imaginava, a seu ver ele tinha uma maior
consideração para com esses supostos amigos de infância do que eles tinham por
ele.
Haviam alguns parentes afastados que moravam na cidade, tios e tias de
seu pai, mas Hanz nunca teve muito contato com eles e não seria agora que isso
mudaria. Sempre houve muita mágoa com relação a esses parentes devido a forma
como ele e seus irmãos eram tratados após a separação de seus pais.
Não devia nada a eles e não seria a partir daquele momento quando Hanz
tinha sua total independência que ele pretendia passar a dever.
Definitivamente para ele não havia família
ali.
Houveram alguns telefonemas de boas vindas, mas Hanz sempre preferiu
retribuir-lhes a indiferença com a qual fora tratado até então da mesma forma,
apenas agradecia de maneira fria e distante, sem comprometer-se com visitas e
coisas do tipo.
De certa forma esse isolamento foi bom para
não restarem raízes do passado já que pretendia ter uma vida nova, diferente da
que tivera até então.
Não que ela tivesse sido horrível, mas Hanz achava que os caminhos que
sua vida tinha seguido não haviam sido os que ele desejava e agora era o
momento de trilhar o caminho de sua escolha, sem ter que se importar com a
opinião alheia, sem estar comprometido com outras pessoas, somente com ele,
suas necessidades e seus sonhos, agora ele era totalmente livre.
Conseguira, após um bom tempo de insistência, a transferência para a
filial da empresa naquela cidade. Tinha um cargo razoável e gozava de uma
grande dose de confiança por parte dos donos dela após cinco anos
prestando-lhes um serviço de qualidade invejável.
Seu
retorno à atividade se daria dentro de alguns dias, quando os últimos detalhes
burocráticos dessa transferência estivessem prontos, e tinha que aproveitar
esse tempo livre para tomar algumas providências em relação à sua casa visto
que ela ficaria a maior parte do tempo sozinha.
O bairro era de classe média mas a casa não
possuía aparatos de segurança com exceção do grande muro e portão de mesmo
porte, e conforme pode perceber através dos noticiários, a violência já não era
tão desprezível na região.
Algumas vezes isso desanimava Hanz pois ele
não esperava que aquela cidade com a qual tanto sonhara em morar estivesse
daquela forma. Imaginava a cidade tranqüila e pacata de outrora, mas ainda que
a violência tivesse crescido nos últimos anos ela ainda não podia ser comparada
a da capital de onde tinha vindo.
Por sugestão de um dos tais “amigos” de
infância Hanz decidiu ir até uma pet shop em busca de um cão de guarda para
tomar conta da sua casa.
Após o almoço o jovem foi até lá, mesmo sendo muito bem atendido
infelizmente a loja não dispunha de nenhum animal para venda, mas alguém veio
socorrê-lo.
- Oi fiu, tudo bem? Ouvi você falando que tá
procurando um cão de guarda, eu acho que posso ajudar. – um rapaz grandalhão
que estava na sessão de rações veio falar-lhe.
-
Isso mesmo, mas aqui não tem nenhum pra vender. Você sabe onde eu posso
encontrar?
-
Olha fiote, meu cunhado tem uma cadela que deu cria faz mais ou menos um mês e
meio, se você estiver interessado eu te reservo um filhote na boa.
Realmente o rapaz era uma figura. Não apenas
pelo modo de se expressar mas também porque à primeira vista ele aparentava ser
totalmente arredio e pouco amistoso, cara fechada, truculento e até ameaçador,
mas ao abrir a boca ele demonstra o quanto as aparências podem enganar.
-
Poxa, muito bom, mas é que meu caso é meio urgente e não sei se um filhote
resolveria o problema...
- Aí que tá fiu, um filhote é o ideal porque
ele acostuma com você desde pequeno, você pode treiná-lo e tal, e poxa fiote,
você tem o que na sua casa pra ser tão urgente assim? Sua privada é de ouro é?
Todos caem na gargalhada, inclusive o rapaz do
pet shop.
-
Não não, nada disso meu, é que eu começo a trabalhar semana que vem e não quero
deixar minha casa sozinha.
- Sei como é isso, a coisa tá feia mesmo
ultimamente, e pelo carrinho que você tem eu imagino como deve ser sua casa, é
fria deixar ela sozinha mesmo... – afirma em tom pensativo o gozador.
- Nada a ver isso, eu não sou rico não meu!!
- Beleza, beleza, foi mal aí fiote.
- Tá
certo. Mas que cachorro é esse? Qual a raça dele?
- É um Rotweiller, coisinhas mais lindas, nasceram
seis filhotes, os pais têm pedigree e tudo, o macho que cruzou com ela é da
capital, veio da Alemanha mesmo, te garanto que compensa fiu. Eu só não pego um
porque já tenho um Pastor Alemão em casa, e não estou dando conta nem dele,
sabe como é, a ração tá cara pra caramba..
-
Nem tanto, antigamente eram bem mais caras, hoje em dia nem estão tão caras,
mas cada um, cada um... Poxa, acho que esse é exatamente o que eu esperava
encontrar. Eu nunca tive cachorro e sempre quis ter um Rotweiller.
- Então fiote, aqui na cidade acho que melhor
opção você não encontra não... e olha, tive uma idéia, vamos fazer o seguinte:
eu to meio mal de grana, então eu deixo o meu Ralf com você até o filhote ter
idade pra cuidar da sua casa, o que você acha?
Hanz
pensa um pouco, meio desconfiado.
-
Sim, mas quanto você vai cobrar por isso? E o tal Ralf não vai me estranhar
não?
O
grandalhão e o rapaz do pet shop caem na gargalhada, Hanz fica sem entender
nada.
- Que nada fiu, é mais fácil você devorar ele
numa hora de aperto entende?
As
gargalhadas não cessam.
-
Pô, então pra que vai adiantar esse seu cachorro então?
- Eu vou te “apresentar” pra ele saca? Então
com você ele não vai fazer nada, mas experimenta pular algum malaco no seu
quintal pra ver só...
Hanz
ainda fica desconfiado.
-
Isso é verdade mesmo, ele trata do Ralf aqui na loja , o bicho é obediente
mesmo, treinado, e pode confiar nele, o cara é gente boa. Pode ficar tranqüilo.
– intervém o rapaz da loja.
- Bom, se você tá garantindo então tá fechado,
mas em quanto vai ficar isso?
-
Olha, eu to enforcadão fiu, é só você bancar a ração dele e cuidar direito do
bichão que tá beleza, o preço do filhote você vê com meu cunhado, daí já é com
vocês ok?
- Ok, então tá fechado.
O destino é uma coisa intrigante, de onde menos
se espera encontramos alguém que pode ser crucial no decorrer de nossas vidas
sem termos a menor noção disso.
O negócio foi fechado como planejado, Hanz e o
rapaz passaram a manter um contato maior do que ambos esperavam que
aconteceria.
Apesar das grandes diferenças de estilo
existentes entre os dois havia uma simpatia recíproca, de forma que o
nascimento de uma amizade foi inevitável.
O
tempo passou, Hanz começou a trabalhar novamente e Renzo, esse era o nome do
grandalhão, passava todas as noites na casa do forasteiro para ver seu estimado
Ralf e também jogar um pouco de conversa fora antes de ir trabalhar.
Renzo era segurança da boate Chopp do Padre,
trabalhando à noite, dedicava quase todo seu dia aos treinos de kung fú, atleta
dedicado, possuía alguns títulos importantes e fazia disso a sua vida. Namorava
Bianca, uma moça com nível de vida bem diferente do dele, por esse motivo
muitos julgavam tratar-se de mero interesse por parte do rapaz, mas quem
conhecia bem o grandalhão sabia que esse tipo de atitude não era de sua índole,
além do mais, o estilo de vida deles não era não diferente em relação a
dinheiro, mas sim em relação ao tipo de pensamentos e idéias.
Apesar
de tudo davam-se bem a seu modo, excluindo alguns desentendimentos comuns a
todo casal.
Mesmo com sua imagem se rotina de vida levando
as pessoas a crerem que Renzo fossem uma pessoa rude e violenta, quem o
conhecia a fundo sabia que esses atributos não eram verdadeiros. Claro que
muitas vezes o jovem tivera que usar suas técnicas de luta para estabelecer a
ordem em suas obrigações profissionais, mas fora dali ou da academia onde
treinava ele jamais se fez valer da violência gratuita.
E foi exatamente por Renzo não ser desse tipo
de pessoa, muito pelo contrário, possuir consciência e conhecimento suficientes
para debater sobre assuntos mais maduros que a amizade entre ele e Hanz pôde se
concretizar.
Rotina era a palavra de ordem na vida de
ambos, que sentiam-se plenamente satisfeitos com isso.
Hanz quando não estava no trabalho dedicava-se
ao estudo, leitura e pesquisa acerca de diversos assuntos como religião,
filosofia, ufologia, ocultismo, etc. Acompanhava política através do
noticiário, mas esse era um assunto que não lhe agradava muito. Costumava ficar
até de madrugada na internet freqüentando chat´s de páginas que tratavam desses
assuntos e encontrava em Renzo a chance de poder debater sobre esses assuntos
com alguém de carne e osso.
Mas todos necessitam de diversão, embora Hanz
considerasse a internet como sendo uma, após muita insistência foi que o jovem
aceitou o convite de Renzo para conhecer o famoso Chopp do Padre, onde
trabalhava o amigo.
O
acontecimento se daria no sábado já que nesse dia comemorariam o aniversário de
Bianca naquela boate.
Hanz conversara muito pouco com ela, na
verdade haviam trocado somente algumas palavras certa vez que por acaso se
encontrara com o casal no centro da cidade.
Era visível que Bianca pertencia à um mundo
totalmente diferente do de Hanz e Renzo. Difícil imaginar o verdadeiro motivo
que fazia com que ambos mantivessem seu relacionamento, mas essa era uma coisa
que Hanz já tinha desistido de entender, afinal, não era um problema dele.
Seus trajes e sua forma de se comportar
demonstravam o porquê de ela nunca ter ido à casa de Hanz, não que ela não
tivesse simpatizado com o rapaz da capital, mas por total incompatibilidade de
interesses.
Mas
apesar disso a garota havia se mostrado bastante atenciosa e simpática com ele,
de forma que não havia motivo algum para que ambos nutrissem alguma antipatia
mútua.
Hanz
percebera o sorriso estampado no rosto do seu amigo, e já que ela o fazia
feliz, passara instantaneamente a simpatizar com ela e não comparecer à sua
festa de aniversário seria uma enorme desfeita.
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