Não se via uma
única nuvem no céu azul e o Sol que acabara de raiar ainda não conseguira
dissipar a umidade trazida pelo frio da noite daquela madrugada de sábado.
Pessoas
caminhando e fazendo cooper eram a única movimentação que se via naquela longa
avenida do bairro residencial naquele horário. Entre essas pessoas estava Hanz
passeando com Brutus que chegara até ali em pouco mais de meia hora de
caminhada.
Sentia-se
estranho, caminhava mecanicamente, acompanhando o ritmo do cachorro, que estava
bem mais animado que ele.
Na
verdade aquele era um fato inusitado, principalmente para o horário, visto que
os hábitos noturnos de Hanz dificilmente permitiam que ele estivesse acordado
numa manhã de sábado. Mas a verdade é que ele não havia dormido bem naquela
noite.
Noite
agitada, sono leve, sonhos estranhos com hospitais e doentes, sirenes e uma
estranha irritação não o deixaram dormir, e já que o dia clareava, nada melhor
que um passeio com Brutus para animar um pouco pois certamente o sono não
voltaria mais.
Em
sua vinda àquela avenida Hanz cruzara todo seu bairro tranqüilamente,
observando as casas. Algumas possuíam bastante luxo, ocupavam todo o quarteirão
e tinham e suas garagens vários carros do ano, já outras eram mais simples mas
nem por isso menos belas.
Não
revoltava-se com aquele luxo todo pois que culpa aquelas pessoas tinham se sua
renda lhes permitia ter uma casa daquelas? Talvez quem passasse por sua casa
também achasse que ali residia um riquinho fútil por causa do carro estacionado
em seu interior, o que absolutamente não era verdade.
Existe
uma diferença entre as pessoas com padrão de vida um pouco mais elevado,
diferença esta que Hanz só foi capaz de perceber a pouco tempo atrás. Até então
para ele os ricos eram pessoas alienadas da realidade do mundo e dos objetivos
reais da vida e infelizmente o que se enquadravam nesse aspecto eram a maioria.
A
verdade é que haviam pessoas com estilo de vida mais sofisticado que se
preocupavam com os problemas do mundo, procuravam respostas para os velhos
problemas humanos, e se alguém o qualificasse como rico, era dessa classe de
ricos que ele fazia parte.
Algumas
vezes sentia-se mal pelo nível de vida que possuía e por tantas e tantas
pessoas mal possuírem o básico para sua sobrevivência, envergonhava-se ao
passear com seu belo carro e ao parar num semáforo ver-se rodeado por crianças
pedindo moedas. Algumas vezes tinha seu porta-malas cheio de compras e via
aqueles serezinhos suplicando pelas migalhas de uma sociedade que preferia
ignorar sua existência ao invés de estender-lhes a mão.
Poderia
ajudar, dar-lhes dinheiro ou algum alimento, mas ele não seria capaz de acabar
com a pobreza de todos os necessitados.
Algumas
vezes ajudava, mas em outras recordava-se de reportagens onde mães inescrupulosas
utilizavam-se dos filhos em proveito próprio e negava-se a ajudar.
Chegava
em casa arrasado, envergonhado do que era e do pouco que era capaz de fazer
para mudar tal situação lastimável.
Mas
ao desligar-se da realidade, durante o sono ou em momentos de reflexão, surgia
uma voz dizendo-lhe para não sentir-se daquela maneira pois não era culpado,
tudo o que possuía havia conseguido mediante seu esforço próprio sem jamais
prejudicar quem quer que fosse, havia trabalhado honestamente para conseguir o
que tinha.
O
problema estava no fato de que alguns poucos desonestos não permitiam que a
maioria tivesse as mesmas oportunidades que ele teve de lutar por seus
objetivos na vida, seja lá qual fosse o objetivo que tivesse.
De
certa forma aquilo o tranqüilizava por algum tempo mas a revolta voltava a
dominá-lo quando presenciava acontecimentos que mostravam-lhe a realidade
novamente. Não era possível distinguir os que possuíam um bom nível baseados no
trabalho honesto dos que haviam conseguido isso através da desonestidade. A
realidade mostrava o abismo existente as classes, e isso se refletia nos carros
luxuosos blindados, nos condomínios fechados de alto luxo, nas crianças nos
semáforos e na violência crescente que vitimava todas as pessoas, ricos e
pobres.
Absorto
em todos esses pensamentos, viam justificadas as ações dos últimos dias, e tão
distraído estava que não reconheceu uma figura curiosa e familiar que passara
por ele pela rua, que ao reconhecê-lo, estacionou um pouco mais adiante e aguardou
sua chegada.
- A
pergunta é: quem tá levando quem pra passear? – indagou a voz feminina com sua
chegada.
Sem
graça o rapaz volta a realidade e tenta responder sem recordar-se bem da
pergunta.
- Hã?
Oi Tatiana, você por aqui!!! Então, essa é uma pergunta que eu sempre me faço
quando saio com ele.
- É,
eu imagino. Olha o tamanho desse meninão, se ele se irritar precisa de uns três
de você pra conseguir segurar, toma cuidado Hanz. – Tatiana desce da moto e faz
um afago no pescoço de Brutus.
- Que
nada Tatiana, eu mandei adestrar o bichão, ele só faz alguma coisa se eu
mandar. Mas e aí, o que está fazendo por esses lados assim de madrugada?
-
Estou indo no mercado comprar umas coisas, meus horários são assim mesmo, não
repara não, eu prefiro assim pela manhã, é mais sossegado.
- Com
certeza, você faz bem, não gosto de lugares lotados, nem mesmo supermercado.
-
Bom, deixa eu ir Hanz, mais tarde eu apareço lá na sua casa pra colocarmos os
outros papos em dia certo? – ela se despede já subindo em sua moto.
- Ok,
te espero mais tarde, boas compras e parabéns pelo trabalho.
Hanz
dá uma piscada para a garota, que entende o recado.
Ao
vê-la seguir seu caminho o rapaz murmura.
-
Seria a luz do sol, seria a noite mal dormida, ou Tatiana estava mais bonita
naquela manhã?
A
verdade era que, a seu modo, a garota despertava-lhe um certo interesse, mas
realmente estava indeciso se aquele momento era propício para iniciar um
relacionamento, principalmente com ela que talvez tivesse um caso com Jean.
Admirava-a
pela coragem, em sua última ação saíra-se perfeitamente, e o melhor, a imprensa
curvara-se diante das exigências do grupo. A verdade estava estampada em todos
os jornais do dia seguinte à ação.
Abandonou
sua reflexão ao ver-se carregado por Brutus que desejava alcançar uma cadela
mais adiante.
Quase
uma hora mais tarde Hanz chegava em casa e encontrou Willian lavando seu carro.
-
Grande Hanz, como você tá cara?
- Eu
tô bem e você? Dando um trato no carango é?
- Tem
que dar né Hanz, hoje é dia de fazer uma presença com a mulherada. Tava
passeando com o bichão é?
-
Tava sim, é bom caminhar um pouco. Fomos lá na avenida, lá é ótimo pra dar uma
caminhada.
-
Verdade cara, tava muito cheio esse horário?
-
Mais ou menos, tinha um pessoal caminhando lá, tava sossegado, nem se compara
com a bagunça que fica lá de noite.
-
Isso é verdade mesmo, pena que eu não tenha sua disposição. Ah Hanz, antes que
eu esqueça deixa eu te contar, os caras estão mordidos contigo.
-
Sei, por causa dos cortes que eu dei no Roger e no Alex?
-
Não, não é por isso não. É que eles dizem que você tem dado umas festas na sua
casa e não tem chamado a galera, daí tão falando que você é traíra e tal...
Você sabe que eu não ligo, mas sabe como eles são...
-
Entendo. Isso é por causa do pessoal que tem vindo em casa esses tempos, uns
colegas meus...
- Por
isso mesmo. Eu sei que não tem nada a ver porque você não curte festas e tal,
falei com eles, mas não esquenta não, isso é falta do que fazer. Tô ligado que
eles vão em festas direto e nem lembram de te chamar, nem sei do que eles
reclamam, é falta do que fazer mesmo.
- É
isso aí Willian, disse tudo. E também não se tratam de festas. Você sabe que eu
sou espírita não sabe? Então, esse pessoal que tem vindo em casa faz parte de
um grupo de estudos que conheci, daí acabamos fazendo um churrasco ou alguma
coisa assim aproveitando o espaço do quintal. Até pensei em chamar o pessoal da
rua mas eu sei que ninguém se interessa por esse tipo de coisa, então nem
pensei mais na idéia.
-
Claro, eu mesmo te confesso que não sou muito de me interessar por esse tipo de
coisa, mas eu logo imaginei que fosse alguma coisa do tipo, você sempre gostou
dessas coisas. Vai vendo cara, ontem até disseram que vocês deviam fazer parte
de alguma seita satânica, terrorista ou algo do tipo. Esse bando de desocupados
não tem o que fazer mesmo...
Mesmo
com o comentário tendo sido feito em meio às risadas de Willian um arrepio
subiu pela espinha de Hanz ao imaginar que alguém pudesse estar desconfiando de
alguma coisa.
-
Sério? Esses caras parecem velhas fofoqueiras, tá louco!!! Daqui a pouco vão
falar que no meu quintal promovemos sacrifício de virgens ou alguma coisa
assim...
- Vai
saber heim!!! Mas que desperdício cara, tá complicado encontrar uma virgem e
você quando encontram vão matar? Porra!!!
Impressionante
a capacidade de dissimulação de Hanz.
-
Puts meu, é verdade mesmo, virgem hoje só abaixo dos dez anos e olha lá!!!
- É
mesmo. Mas você viu só que coisa essas explosões que estão acontecendo na
cidade cara? Parece coisa daqueles grupos terroristas do oriente médio!!!! Quem
diria que apareceria esse tipo de coisa em nosso país, principalmente aqui
nessa cidade morta cara...
Novamente
o assunto volta à pauta. Estaria o amigo desconfiado de alguma coisa ou era
apenas um pretexto para prolongar a conversa?
- Eu
tô sabendo meu, espero que a polícia dê logo um jeito nesses caras.
-
Logo, logo a polícia pega eles. Mas eu acho que isso não é coisa de gente daqui
não, deve ser coisa de gente de fora que escolheu a cidade porque é sossegada.
Quem daqui faria coisas assim? Eu não conheço ninguém...
- De
fora como meu? Estrangeiros, grupos internacionais? Alguma coisa assim?
- É,
sei lá, de repente pode até ser, só acho que não deve ser gente da cidade não,
ninguém por aqui se interessa por esse tipo de coisa. Mas olha, na boa, eu até
concordo com esses caras, a coisa tá ficando feia mesmo, se ninguém fizer nada
sabe Deus onde as coisas irão chegar?
- A
situação não está fácil mesmo, a cidade mesmo que antes era tão tranqüila já
está ficando violenta, mas olha, eu não concordo com o uso da violência não,
existem outras formas de se manifestar. – Hanz realmente é um ator de primeira.
- Ah
Hanz, eu também concordo que usar manifestações pacíficas seria melhor mas
chega uma hora que tem que botar pra quebrar mesmo cara. O povo sempre foi
pacífico e ganhou o quê? Sempre foi feito de trouxa. Tem muito colega meu lá da
faculdade que dá total apoio à esse grupo aí, secretamente, é claro.
Hanz
ficou pensativo, alisando o pêlo de Brutus, tentando disfarçar ao máximo
qualquer tipo de comportamento que pudesse denunciar sua participação naqueles
acontecimentos.
-
Olha meu, isso pra mim é coisa de comunista ou então de uma meia-dúzia de
babaca querendo se meter a revolucionário e tal. Logo, logo a polícia pega eles
e acaba a farra.
-
Hum... sei não Hanz, pra mim isso tem cara de gente organizada, coisa
internacional até. Vai saber se não tem alguma ligação com o grupo do Bin Laden
ou coisa parecida?
Hanz
se segurou para não rir. Era impressionante como as pessoas davam tamanha
dimensão para um grupo de seis amigos que pouco eram organizados. Isso até lhe
deu um certo orgulho, afinal, suas ações estavam sendo atribuídas à um grupo
altamente organizado e perigoso.
A
conversa que até então iniciara-se inocentemente estava sendo bastante útil
pois Hanz tinha a oportunidade de saber mais da opinião pública sobre as ações
do grupo. Mal podia esperar o início da reunião para conversar sobre aquilo com
os outros.
- É
Willian, não dá pra saber, os caras não se identificaram, pode ser que sim e
também pode ser que não. Meu, deixa eu entrar que o bichão tá morrendo de sede,
e eu também.
- Beleza
Hanz, vai lá e vê se aparece pra gente trocar uma idéia. Eu sei que junto dos
caras é difícil falar de alguma coisa útil, mas qualquer coisa me chama em casa
beleza?
-
Pode deixar meu, eu chamo sim. Até mais.
Hanz
percorreu a quase meia-quadra que o levava até sua casa ainda com um sorriso,
achava engraçado em ver o grupo que formara tomar uma dimensão daquelas. Ser
confundido com grupos terroristas internacionais?
Embora
os “primos” estrangeiros possuírem um poder econômico e bélico imensamente
maior que o grupo que formara estavam ligados de certa forma por alguns ideais
que defendiam.
Impossível
disfarçar o orgulho que sentia, não só pelo patamar ao qual seu grupo era
elevado mas também por saber que ele ganhava a simpatia do povo, o que era
imprescindível para seu sucesso.
Já em
sua casa Hanz serviu água fresca e abasteceu-se também do líquido, eram quase
dez da manhã e a temperatura já estava elevada.
Por
volta das duas da tarde o telefone tocou, novamente era a mãe de Hanz perguntando
ao filho como estava a situação na cidade, se ele estava em segurança e tudo o
mais. Coisas que normalmente costumam causar preocupação nas mães,
principalmente na situação que a cidade passara a se encontrar nos últimos
dias. Já devia ser a terceira ligação que ela fazia após a mídia tornar público
os acontecimentos incomuns àquele país.
Será
que ela ficaria mais tranqüila se descobrisse que seu filho era um dos
principais articuladores daquelas ações que agora eram o principal foco da
imprensa no país?
Hanz
jamais cogitara a hipótese de contar à ela ou à qualquer outro familiar sobre
seu envolvimento naqueles acontecimentos, sempre respondeu à ela que estava
tudo bem, que ela não se preocupasse, que as explosões haviam ocorrido longe da
sua casa e do seu trabalho, de forma que pudesse tranqüilizá-la.
Mãe é
mãe, mesmo com o filho tendo cinqüenta anos ela sempre se preocupa com ele como
se ainda tivesse dez.
Noite
fria e dia quente, essa era uma particularidade do outono daquela região, o que
tornava o horário do pôr e do nascer do sol aquele em que a temperatura era
mais amena, ideal para qualquer atividade física, não que Hanz fosse um
aficionado por exercícios físicos, muito pelo contrário, quem adorava
atividades físicas era Renzo, que naquele horário também deveria estar acordado
pois trabalhara à noite.
Colocou
uma música e foi tomar seu banho.
Tinha
que almoçar e ir no mercado antes que seus amigos começassem a chegar para a
reunião que estava marcada.
Passou
a mão no rosto, a barba estava meio grande.
-
Hum... não vou fazer não, a Tatiana deve gostar de barba assim pegando... –
pensou ele que se surpreendeu com o que acaba de dizer.
“Que
diabo tá acontecendo? Sem querer eu me pego pensando nessa garota, que saco!!!”
– pensou ele pegando o aparelho de barbear.
Ele
jamais sentira-se atraído por garotas do estilo dela, roqueiras, radicais,
selvagens... nem ele mesmo entendia o porquê de por diversas vezes
surpreender-se pensando nela.
Mas
bem era verdade que ele também nunca se relacionara com ninguém daquele estilo,
mesmo gostando de rock e heavy metal, seu círculo de amizades jamais teve
pessoas assim, aliás, quem visse Hanz jamais imaginaria que ele gostava desse
estilo de música.
Talvez
por esse motivo a garota agora exercia sobre ele uma atração que ele não
conseguia entender ou controlar.
Um
gosto reprimido, a ansiedade inconsciente de experimentar algo novo, um fetiche
enclausurado em seu subconsciente?
A
verdade era que nem ele mesmo sabia explicar o que se passava.
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