quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Capítulo XVI



Não se via uma única nuvem no céu azul e o Sol que acabara de raiar ainda não conseguira dissipar a umidade trazida pelo frio da noite daquela madrugada de sábado.
     Pessoas caminhando e fazendo cooper eram a única movimentação que se via naquela longa avenida do bairro residencial naquele horário. Entre essas pessoas estava Hanz passeando com Brutus que chegara até ali em pouco mais de meia hora de caminhada.
     Sentia-se estranho, caminhava mecanicamente, acompanhando o ritmo do cachorro, que estava bem mais animado que ele.
     Na verdade aquele era um fato inusitado, principalmente para o horário, visto que os hábitos noturnos de Hanz dificilmente permitiam que ele estivesse acordado numa manhã de sábado. Mas a verdade é que ele não havia dormido bem naquela noite.
     Noite agitada, sono leve, sonhos estranhos com hospitais e doentes, sirenes e uma estranha irritação não o deixaram dormir, e já que o dia clareava, nada melhor que um passeio com Brutus para animar um pouco pois certamente o sono não voltaria mais.
     Em sua vinda àquela avenida Hanz cruzara todo seu bairro tranqüilamente, observando as casas. Algumas possuíam bastante luxo, ocupavam todo o quarteirão e tinham e suas garagens vários carros do ano, já outras eram mais simples mas nem por isso menos belas.
     Não revoltava-se com aquele luxo todo pois que culpa aquelas pessoas tinham se sua renda lhes permitia ter uma casa daquelas? Talvez quem passasse por sua casa também achasse que ali residia um riquinho fútil por causa do carro estacionado em seu interior, o que absolutamente não era verdade.
     Existe uma diferença entre as pessoas com padrão de vida um pouco mais elevado, diferença esta que Hanz só foi capaz de perceber a pouco tempo atrás. Até então para ele os ricos eram pessoas alienadas da realidade do mundo e dos objetivos reais da vida e infelizmente o que se enquadravam nesse aspecto eram a maioria.
     A verdade é que haviam pessoas com estilo de vida mais sofisticado que se preocupavam com os problemas do mundo, procuravam respostas para os velhos problemas humanos, e se alguém o qualificasse como rico, era dessa classe de ricos que ele fazia parte.
     Algumas vezes sentia-se mal pelo nível de vida que possuía e por tantas e tantas pessoas mal possuírem o básico para sua sobrevivência, envergonhava-se ao passear com seu belo carro e ao parar num semáforo ver-se rodeado por crianças pedindo moedas. Algumas vezes tinha seu porta-malas cheio de compras e via aqueles serezinhos suplicando pelas migalhas de uma sociedade que preferia ignorar sua existência ao invés de estender-lhes a mão.
     Poderia ajudar, dar-lhes dinheiro ou algum alimento, mas ele não seria capaz de acabar com a pobreza de todos os necessitados.
     Algumas vezes ajudava, mas em outras recordava-se de reportagens onde mães inescrupulosas utilizavam-se dos filhos em proveito próprio e negava-se a ajudar.
     Chegava em casa arrasado, envergonhado do que era e do pouco que era capaz de fazer para mudar tal situação lastimável.
     Mas ao desligar-se da realidade, durante o sono ou em momentos de reflexão, surgia uma voz dizendo-lhe para não sentir-se daquela maneira pois não era culpado, tudo o que possuía havia conseguido mediante seu esforço próprio sem jamais prejudicar quem quer que fosse, havia trabalhado honestamente para conseguir o que tinha.
     O problema estava no fato de que alguns poucos desonestos não permitiam que a maioria tivesse as mesmas oportunidades que ele teve de lutar por seus objetivos na vida, seja lá qual fosse o objetivo que tivesse.
     De certa forma aquilo o tranqüilizava por algum tempo mas a revolta voltava a dominá-lo quando presenciava acontecimentos que mostravam-lhe a realidade novamente. Não era possível distinguir os que possuíam um bom nível baseados no trabalho honesto dos que haviam conseguido isso através da desonestidade. A realidade mostrava o abismo existente as classes, e isso se refletia nos carros luxuosos blindados, nos condomínios fechados de alto luxo, nas crianças nos semáforos e na violência crescente que vitimava todas as pessoas, ricos e pobres.
     Absorto em todos esses pensamentos, viam justificadas as ações dos últimos dias, e tão distraído estava que não reconheceu uma figura curiosa e familiar que passara por ele pela rua, que ao reconhecê-lo, estacionou um pouco mais adiante e aguardou sua chegada.
     - A pergunta é: quem tá levando quem pra passear? – indagou a voz feminina com sua chegada.
     Sem graça o rapaz volta a realidade e tenta responder sem recordar-se bem da pergunta.
     - Hã? Oi Tatiana, você por aqui!!! Então, essa é uma pergunta que eu sempre me faço quando saio com ele.
     - É, eu imagino. Olha o tamanho desse meninão, se ele se irritar precisa de uns três de você pra conseguir segurar, toma cuidado Hanz. – Tatiana desce da moto e faz um afago no pescoço de Brutus.
     - Que nada Tatiana, eu mandei adestrar o bichão, ele só faz alguma coisa se eu mandar. Mas e aí, o que está fazendo por esses lados assim de madrugada?
     - Estou indo no mercado comprar umas coisas, meus horários são assim mesmo, não repara não, eu prefiro assim pela manhã, é mais sossegado.
     - Com certeza, você faz bem, não gosto de lugares lotados, nem mesmo supermercado.
     - Bom, deixa eu ir Hanz, mais tarde eu apareço lá na sua casa pra colocarmos os outros papos em dia certo? – ela se despede já subindo em sua moto.
     - Ok, te espero mais tarde, boas compras e parabéns pelo trabalho.
     Hanz dá uma piscada para a garota, que entende o recado.
     Ao vê-la seguir seu caminho o rapaz murmura.
     - Seria a luz do sol, seria a noite mal dormida, ou Tatiana estava mais bonita naquela manhã?
     A verdade era que, a seu modo, a garota despertava-lhe um certo interesse, mas realmente estava indeciso se aquele momento era propício para iniciar um relacionamento, principalmente com ela que talvez tivesse um caso com Jean.
     Admirava-a pela coragem, em sua última ação saíra-se perfeitamente, e o melhor, a imprensa curvara-se diante das exigências do grupo. A verdade estava estampada em todos os jornais do dia seguinte à ação.
     Abandonou sua reflexão ao ver-se carregado por Brutus que desejava alcançar uma cadela mais adiante.
     Quase uma hora mais tarde Hanz chegava em casa e encontrou Willian lavando seu carro.
     - Grande Hanz, como você tá cara?
     - Eu tô bem e você? Dando um trato no carango é?
     - Tem que dar né Hanz, hoje é dia de fazer uma presença com a mulherada. Tava passeando com o bichão é?
     - Tava sim, é bom caminhar um pouco. Fomos lá na avenida, lá é ótimo pra dar uma caminhada.
     - Verdade cara, tava muito cheio esse horário?
     - Mais ou menos, tinha um pessoal caminhando lá, tava sossegado, nem se compara com a bagunça que fica lá de noite.
     - Isso é verdade mesmo, pena que eu não tenha sua disposição. Ah Hanz, antes que eu esqueça deixa eu te contar, os caras estão mordidos contigo.
     - Sei, por causa dos cortes que eu dei no Roger e no Alex?
     - Não, não é por isso não. É que eles dizem que você tem dado umas festas na sua casa e não tem chamado a galera, daí tão falando que você é traíra e tal... Você sabe que eu não ligo, mas sabe como eles são...
     - Entendo. Isso é por causa do pessoal que tem vindo em casa esses tempos, uns colegas meus...
     - Por isso mesmo. Eu sei que não tem nada a ver porque você não curte festas e tal, falei com eles, mas não esquenta não, isso é falta do que fazer. Tô ligado que eles vão em festas direto e nem lembram de te chamar, nem sei do que eles reclamam, é falta do que fazer mesmo.
     - É isso aí Willian, disse tudo. E também não se tratam de festas. Você sabe que eu sou espírita não sabe? Então, esse pessoal que tem vindo em casa faz parte de um grupo de estudos que conheci, daí acabamos fazendo um churrasco ou alguma coisa assim aproveitando o espaço do quintal. Até pensei em chamar o pessoal da rua mas eu sei que ninguém se interessa por esse tipo de coisa, então nem pensei mais na idéia.
     - Claro, eu mesmo te confesso que não sou muito de me interessar por esse tipo de coisa, mas eu logo imaginei que fosse alguma coisa do tipo, você sempre gostou dessas coisas. Vai vendo cara, ontem até disseram que vocês deviam fazer parte de alguma seita satânica, terrorista ou algo do tipo. Esse bando de desocupados não tem o que fazer mesmo...
     Mesmo com o comentário tendo sido feito em meio às risadas de Willian um arrepio subiu pela espinha de Hanz ao imaginar que alguém pudesse estar desconfiando de alguma coisa.
     - Sério? Esses caras parecem velhas fofoqueiras, tá louco!!! Daqui a pouco vão falar que no meu quintal promovemos sacrifício de virgens ou alguma coisa assim...
     - Vai saber heim!!! Mas que desperdício cara, tá complicado encontrar uma virgem e você quando encontram vão matar? Porra!!!
     Impressionante a capacidade de dissimulação de Hanz.
     - Puts meu, é verdade mesmo, virgem hoje só abaixo dos dez anos e olha lá!!!
     - É mesmo. Mas você viu só que coisa essas explosões que estão acontecendo na cidade cara? Parece coisa daqueles grupos terroristas do oriente médio!!!! Quem diria que apareceria esse tipo de coisa em nosso país, principalmente aqui nessa cidade morta cara...
     Novamente o assunto volta à pauta. Estaria o amigo desconfiado de alguma coisa ou era apenas um pretexto para prolongar a conversa?
     - Eu tô sabendo meu, espero que a polícia dê logo um jeito nesses caras.
     - Logo, logo a polícia pega eles. Mas eu acho que isso não é coisa de gente daqui não, deve ser coisa de gente de fora que escolheu a cidade porque é sossegada. Quem daqui faria coisas assim? Eu não conheço ninguém...
     - De fora como meu? Estrangeiros, grupos internacionais? Alguma coisa assim?
     - É, sei lá, de repente pode até ser, só acho que não deve ser gente da cidade não, ninguém por aqui se interessa por esse tipo de coisa. Mas olha, na boa, eu até concordo com esses caras, a coisa tá ficando feia mesmo, se ninguém fizer nada sabe Deus onde as coisas irão chegar?
     - A situação não está fácil mesmo, a cidade mesmo que antes era tão tranqüila já está ficando violenta, mas olha, eu não concordo com o uso da violência não, existem outras formas de se manifestar. – Hanz realmente é um ator de primeira.
     - Ah Hanz, eu também concordo que usar manifestações pacíficas seria melhor mas chega uma hora que tem que botar pra quebrar mesmo cara. O povo sempre foi pacífico e ganhou o quê? Sempre foi feito de trouxa. Tem muito colega meu lá da faculdade que dá total apoio à esse grupo aí, secretamente, é claro.
     Hanz ficou pensativo, alisando o pêlo de Brutus, tentando disfarçar ao máximo qualquer tipo de comportamento que pudesse denunciar sua participação naqueles acontecimentos.
     - Olha meu, isso pra mim é coisa de comunista ou então de uma meia-dúzia de babaca querendo se meter a revolucionário e tal. Logo, logo a polícia pega eles e acaba a farra.
     - Hum... sei não Hanz, pra mim isso tem cara de gente organizada, coisa internacional até. Vai saber se não tem alguma ligação com o grupo do Bin Laden ou coisa parecida?
     Hanz se segurou para não rir. Era impressionante como as pessoas davam tamanha dimensão para um grupo de seis amigos que pouco eram organizados. Isso até lhe deu um certo orgulho, afinal, suas ações estavam sendo atribuídas à um grupo altamente organizado e perigoso.
     A conversa que até então iniciara-se inocentemente estava sendo bastante útil pois Hanz tinha a oportunidade de saber mais da opinião pública sobre as ações do grupo. Mal podia esperar o início da reunião para conversar sobre aquilo com os outros.
     - É Willian, não dá pra saber, os caras não se identificaram, pode ser que sim e também pode ser que não. Meu, deixa eu entrar que o bichão tá morrendo de sede, e eu também.
     - Beleza Hanz, vai lá e vê se aparece pra gente trocar uma idéia. Eu sei que junto dos caras é difícil falar de alguma coisa útil, mas qualquer coisa me chama em casa beleza?
     - Pode deixar meu, eu chamo sim. Até mais.
     Hanz percorreu a quase meia-quadra que o levava até sua casa ainda com um sorriso, achava engraçado em ver o grupo que formara tomar uma dimensão daquelas. Ser confundido com grupos terroristas internacionais?
     Embora os “primos” estrangeiros possuírem um poder econômico e bélico imensamente maior que o grupo que formara estavam ligados de certa forma por alguns ideais que defendiam.
     Impossível disfarçar o orgulho que sentia, não só pelo patamar ao qual seu grupo era elevado mas também por saber que ele ganhava a simpatia do povo, o que era imprescindível para seu sucesso.
     Já em sua casa Hanz serviu água fresca e abasteceu-se também do líquido, eram quase dez da manhã e a temperatura já estava elevada.
     Por volta das duas da tarde o telefone tocou, novamente era a mãe de Hanz perguntando ao filho como estava a situação na cidade, se ele estava em segurança e tudo o mais. Coisas que normalmente costumam causar preocupação nas mães, principalmente na situação que a cidade passara a se encontrar nos últimos dias. Já devia ser a terceira ligação que ela fazia após a mídia tornar público os acontecimentos incomuns àquele país.
     Será que ela ficaria mais tranqüila se descobrisse que seu filho era um dos principais articuladores daquelas ações que agora eram o principal foco da imprensa no país?
     Hanz jamais cogitara a hipótese de contar à ela ou à qualquer outro familiar sobre seu envolvimento naqueles acontecimentos, sempre respondeu à ela que estava tudo bem, que ela não se preocupasse, que as explosões haviam ocorrido longe da sua casa e do seu trabalho, de forma que pudesse tranqüilizá-la.
     Mãe é mãe, mesmo com o filho tendo cinqüenta anos ela sempre se preocupa com ele como se ainda tivesse dez.
     Noite fria e dia quente, essa era uma particularidade do outono daquela região, o que tornava o horário do pôr e do nascer do sol aquele em que a temperatura era mais amena, ideal para qualquer atividade física, não que Hanz fosse um aficionado por exercícios físicos, muito pelo contrário, quem adorava atividades físicas era Renzo, que naquele horário também deveria estar acordado pois trabalhara à noite.
     Colocou uma música e foi tomar seu banho.
     Tinha que almoçar e ir no mercado antes que seus amigos começassem a chegar para a reunião que estava marcada.
     Passou a mão no rosto, a barba estava meio grande.
     - Hum... não vou fazer não, a Tatiana deve gostar de barba assim pegando... – pensou ele que se surpreendeu com o que acaba de dizer.
     “Que diabo tá acontecendo? Sem querer eu me pego pensando nessa garota, que saco!!!” – pensou ele pegando o aparelho de barbear.
     Ele jamais sentira-se atraído por garotas do estilo dela, roqueiras, radicais, selvagens... nem ele mesmo entendia o porquê de por diversas vezes surpreender-se pensando nela.
     Mas bem era verdade que ele também nunca se relacionara com ninguém daquele estilo, mesmo gostando de rock e heavy metal, seu círculo de amizades jamais teve pessoas assim, aliás, quem visse Hanz jamais imaginaria que ele gostava desse estilo de música.
     Talvez por esse motivo a garota agora exercia sobre ele uma atração que ele não conseguia entender ou controlar.
     Um gosto reprimido, a ansiedade inconsciente de experimentar algo novo, um fetiche enclausurado em seu subconsciente?
     A verdade era que nem ele mesmo sabia explicar o que se passava.

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