terça-feira, 18 de março de 2014

Capítulo XXV



  << Está enraizada no íntimo da grande maioria das pessoas a idéia de que os pecadores ao deixarem esse mundo serão arremessados incondicionalmente ao fogo eterno de um lugar denominado inferno e de que lá eles sofrerão os mais terríveis suplícios pelo resto dos tempos. Nada mais justo que aqueles que se dedicaram ao mal, às atividades perniciosas à o que quer que seja, paguem pelo que fizeram de errado de alguma forma. Em alguns casos o tal inferno até aparenta ser brando demais em vista das atrocidades que essas pessoas cometeram em vida, mas ao menos é uma forma de punição. Mas como podemos ter a noção perfeita do que é ou não errado? Se até mesmo o ato de comer excessivamente, a gula, é considerada pecado, isso nos leva a crer que todos estamos condenados aos suplícios infernais pois muito raramente encontramos quem nada faça de errado. Se formos considerar que o mal só assim é considerado quando há a intenção de se fazer o mal a questão torna-se ainda mais complicada pois aquele que come até não poder mais não o faz por maldade mas sim por prazer. Então essa pessoa seria considerada inocente já que não está prejudicando ninguém, apesar de cometer um pecado, o da gula. Então milhares e milhares de assassinos que se dedicam aos seus atos bizarros também seriam considerados inocentes pois o fazem baseados nos mais absurdos conceitos sem ser no da maldade. Não seriam eles então culpados? Não seriam ser enviados para o tão mencionado inferno? Se não é possível através do nosso íntimo traçarmos um parâmetro para diferenciar o bem do mal então devemos seguir os parâmetros traçados por outras pessoas cuja idoneidade é desconhecida? Então devemos seguir conceitos morais pregados por religiões para assim estarmos a salvo dos suplícios eternos? Se não há uma religião universal que detenha a verdade absoluta qual dentre elas prega a verdade a ser seguida? Então deduz-se que devemos escolher qual religião seguir baseados no que nos diz nosso íntimo, seguir aquela que toca nosso coração. Mas se nosso íntimo é falho o suficiente para que não possamos traçar nossas próprias limitações, como ele pode não o ser para a escolha da religião a ser seguida? Enquanto as pessoas sofrem com esse dilema, aumenta o número de confinados no inferno e o trabalho do seu zelador, Lúcifer. >>
  - Puts fiu, acho que me deu um nó no cérebro. Essas idéias são complicadas pra caramba!!! – exclama Renzo ao terminar de ler a matéria indicada por Hanz, que acabara de colocar um prato congelado no microondas.
  - É Renzo, tem muita coisa interessante na internet, não é só bate-papo e mulher pelada como vocês pensam. Quando eu passo o dia nisso é pra ler esse tipo de coisa e não apenas por farra, entendeu agora?
  - Legal fiote, esses textos fazem a gente refletir... Mas a que conclusão você chegou ao ler isso?
  - Cada um tem um jeito de pensar, cada um tira suas próprias conclusões. Você tem que tirar as suas sem se basear nas minhas pois cada um tem uma forma de ver as coisas. – respondia Hanz da cozinha.
  Renzo ficou alguns instantes refletindo. Rindo ele concluiu.
  - Olha fiu, na boa, eu acho que a gente tá é ferrado!!!
  - Ahahahahaha, você é fogo meu!!! Vem comer logo que já, já tá pronto. Tô morrendo de fome. – disse Hanz divertindo-se com o amigo.
  - Ok, deixa eu desligar aqui.
  Hanz colocou um cd do Iron Maiden para tocar, o que fez com que o amigo lembrasse de uma dúvida que sempre teve.
  - Fiu, deixa eu te perguntar uma coisa: você é um sujeito espiritualizado, que estuda esses esquema todo de espiritismo, religião e tal mas você curte heavy metal... Todo mundo diz que esse tipo de música é coisa do capeta e tal, como você concilia essas duas coisas assim na boa?
  - Olha Renzo, a própria doutrina espírita, que é a religião que eu sigo, não aconselha que se ouça esses estilos de música devido à todas essas alegações que a gente tá cansado de saber, mas não proíbe. O espiritismo não proíbe nada, ele prega que devemos seguir nosso bom senso, respeita o nosso livre arbítrio. Eu sei que muitas músicas, até do Iron mesmo, são explicitamente satânicas e tudo o mais, mas eu não sigo o que elas dizem. Ouço porque eu curto a musicalidade delas, o trabalho instrumental... Ao meu ver não há problema nenhum nisso, mas cada um é cada um e faz o que acha que é melhor. Se minha consciência me diz que não tem problema em ouvir, eu ouço...
  Renzo fica pensando nas palavras do amigo.
  - Então você usa o que o seu íntimo diz, como no texto que eu li agora certo? Mas e se não for o julgamento correto?
  - Eu faço o que acho melhor pra mim, e não vejo problema algum nisso. Se meu modo de julgar não for o correto então farei companhia ao capeta quando morrer. – respondeu o rapaz caindo na risada, no que foi seguido pelo amigo.
  - Tá certo fiote, entendi. Eu penso que não adianta proibir as coisas, tudo o que é proibido é mais gostoso, desperta mais curiosidade e acaba tendo seu objetivo inicial invertido porque ao invés de afastar acaba aproximando mais as pessoas daquilo que foi proibido.
  - É bem por aí meu, por isso discordei de outras religiões que proibiam e ainda proíbem as coisas sem explicar os motivos para tal proibição
  - Dá a impressão que veio um cara ditando o que é certo e o que é errado, sem explicar os motivos, só baseado em seu gosto particular.
  - É isso mesmo. E se você parar pra pensar vai ver que muita coisa que é proibida não tem nenhum motivo pra ser...
  Por alguns instantes os dois permaneceram em silêncio, talvez apenas curtissem a música que tocava ou estavam ouvindo suas vozes interiores que os ajudavam a refletir sobre o assunto que conversavam. No caso de Renzo parecia que a segunda opção era a verdadeira.
  - Olha fiote, antes de conhecer você eu até filosofava sobre esses papos e tal, muito por causa do kung fú que tem uma parte filosófica bem legal, mas não chegava nesses pontos que mexem tanto com a cabeça da gente...
  - Sei como é Renzo, a gente fica querendo saber os porquês das coisas mas não sabe onde procurar... Era assim que eu me sentia quando era moleque, procurei em muitas coisas as respostas para as várias perguntas que eu tinha até que por acaso encontrei o kardecismo. Mas cada um encontra num lugar diferente, até mesmo porque as respostas que procuram são diferentes pra cada um. Mas um parâmetro que eu sempre segui foi o de sempre questionar, nunca aceitar algo como sendo uma verdade sem entender os motivos, apenas porque alguém ou alguma coisa prega.
  Novamente fez-se o silêncio.
  Hanz se impressionava com o interesse do amigo por esses assuntos. Por trás daquela aparência rude de lutador e de algumas atitudes agressivas que às vezes tinha existia uma alma à procura de respostas assim como tantas e tantas outras.
  O microondas deu sinal de que o jantar estava pronto e Hanz foi buscá-lo.
  - Mas e então Renzo, quer dizer que em relação ao Paulo ficou tudo na mesma? – disse ele ainda da cozinha.
  - Pior que é fiu, o cara ficou novamente com os dois sujeitos lá na lanchonete quase três horas e depois voltou pra casa. O pior foi que eu perdi a tarde toda lá parado à toa.
  - É fogo meu, eu imagino. Mas é melhor esquecer esse negócio de ficar seguindo o cara porque não tá adiantando nada. Pelo jeito isso tudo não deve passar de frescura dele mesmo.
  - É, deve ser isso mesmo. Pior que ele sempre pareceu ser super gente boa e agora começa a dar essas mancadas. Nunca tinha visto ele assim pô. E fui eu quem coloquei ele no esquema...
  Hanz traz os pratos de uma deliciosa lasanha.
  - Esquece meu, não tem como a gente saber o que se passa na cabeça dos outros, nem esquenta. Muitas vezes nos surpreendemos com nossas próprias atitudes, o que dizer das atitudes dos outros então? Fica sossegado...
  Mais uma vez os dois emudecem ocupados com o jantar. O silêncio só não surge devido aos acordes de guitarra da música.
  - E você falou com o Jean fiote?
  - Liguei pra ele ontem e expliquei nosso problema. Ele liberou os brinquedos na boa pra gente mas disse pra ficar só entre nós isso porque se os outros souberem é capaz de todo mundo querer ficar com elas.
  - É, tá certo. Do jeito que o Paulo anda escroto seria bem capaz de ele criar caso com isso também. Sério fiote, você não imagina a vontade que eu tô de tirar ele fora do grupo...
  - A vontade não é apenas sua meu, mas é complicado. Do jeito que ele anda seria bem capaz de aí sim ele dar um jeito de ferrar a gente. Sem contar que ele saindo é óbvio que a Cibele também sairia e não dá pra termos esses desfalques no grupo agora. Mas acho melhor telefonar pro Jean e pra Tatiana pra contar desse comportamento esquisito dele, acho que eles não tão sabendo desses sumiços dele ainda, só se a Cibele tiver contado, mas acho que não contou não.
  - É verdade fiote, avisa eles sim, é bom todo mundo saber do que tá acontecendo. Mas olha... o complicado é termos que fazer coisas que requerem a máxima confiança entre as pessoas tendo ao nosso lado alguém que já não inspira essa confiança na gente. Não curto isso de o cara não se posicionar a respeito das coisas. Ele fica nessa de má vontade fiote, parece que continua no grupo por obrigação...
  - Não é só você, acho que ninguém curte essa situação mas no momento não dá pra fazer nada meu. O jeito é torcer pra não ser nada de mais e que ele não ferre com a gente.
  Em tom sarcástico Renzo arremata.
  - Bom... ter até tem, mas nossa consciência não deixa.
  Mesmo sabendo que se trata de uma brincadeira do amigo a idéia parece incomodar o dono da casa.
  - Nem cogito isso meu, tem a mulher... o filho... eu não quero isso pesando na consciência, eu tô fora.
  - Mais do que qualquer um eu conheço a família dele fiote. Tudo bem, nossa consciência fica tranqüila, mas mofamos na cadeia só por causa de uma crise do cara? E outra, se ele decide ferrar o grupo ele vai estar ferrando a Cibele também, é por isso que acho que ele não faria nada.
  - Tem isso também, ele não deve estar tão pirado a esse ponto...
  - O problema é que talvez o casalzinho se dê bem, fuja, sei lá, e sobre só pra gente. A Cibele não concordaria com isso, é lógico, mas se ela visse que o bicho vai pegar e não restasse outra saída... É um caso a se pensar, vendo por esse lado o cara oferece um grande risco pra gente e dá vontade de tomar alguma atitude...
  - Meu, tudo bem que temos que zelar pela nossa segurança, mas porra, o cara é seu amigo, como você pode pensar em fazer isso? – Hanz fica indignado com a frieza de Renzo.
  - Fiu, a partir do momento em que ele passa a ameaçar o grupo e à mim o meu instinto de sobrevivência fala mais alto e é preferível que ele se ferre do que eu. Ou você ia querer mofar na cadeia enquanto ele fica na boa?
  - Se você, mesmo tendo visto que o infeliz só fica num bar tomando cerveja com uns colegas, ainda acha que ele nos ameaça apresente sua idéia pro resto do grupo e vê o que vocês decidem meu. Não seremos nós que tomaremos alguma atitude, isso tem que ser decidido pelo grupo todo.
  - Não entendo porque você fica nervosinho fiote. Não é só por mim não, é por você também fiu, sua segurança também está em risco.
  Hanz levanta-se e olha dentro dos olhos de Renzo.
  - Só que isso significa que se você achar que deve acabar comigo também por algum motivo mirabolante da sua cabeça você não hesitaria em fazer isso, estou certo?
  - Quem sabe fiote, se de alguma forma você representasse perigo... qualquer um pensa assim, não apenas eu. Vai dizer que se fosse o contrário você não faria nada?
  - Somente se fosse um perigo eminente, real... e não por causa de uma suspeita sem nenhuma prova, como é o caso.
  Renzo parece perceber o quanto está enganado, afinal de contas, eles apenas supõem que Paulo possa fazer-lhes alguma coisa, não há nada concreto.
  Hanz coloca um ponto final no assunto, bastante decepcionado com as afirmações do amigo.
  - Bom Renzo, eu já disse o que deve fazer. Não sou eu quem decide nada. Leve sua questão ao grupo e veja o que o pessoal acha, telefone pra eles. Agora, não me leva a mal não meu, mas acho melhor você terminar de comer e sair fora, tenho muita coisa pra fazer ainda. – e vai para a cozinha com seu prato já vazio.
  O grandalhão acompanha o amigo pois percebe a mancada que dera e tenta se explicar pois preza muito a amizade dele.
  - Porra fiu, precisa ficar assim? Eu não disse que quero dar um fim no cara, apenas cogitei a hipótese porque essa seria nossa única saída. Nem vou levar isso ao grupo cara, não há prova alguma de que ele seja uma ameaça.
  Enquanto lava seu prato Hanz prossegue com a conversa.
  - Certo meu, certo. Deixa isso pra lá. Eu entendi o que voe quis dizer, apenas me surpreendi pelo fato de ele ser seu amigo e você dar uma idéia dessas, mas tudo bem, esquece. O que você disse está certo: a partir do momento que a confiança acaba seja do lado que for a coisa se complica mesmo. E não tá dando pra confiar mesmo no Paulo, só que não dá pra gente fazer nada e dar um fim nele já é algo extremo demais porque até então ele não fez nada.
  - Eu concordo contigo fiote e fico feliz que tenha entendido o que eu disse. Mas eu tenho que ir nessa mesmo, vou dar uma passada na casa da Bianca. É bom que você fica sossegado pra fazer suas coisas aí.
  - Tá certo então. A gente se fala antes do grande dia. – Hanz acompanha o amigo até a porta da sala.
  - Beleza, eu te ligo antes. Fiu, você não imagina o quanto estou ansioso... essa será a maior!!!
  Após as despedidas de costume Renzo seguiu com seus planos para aquela noite e Hanz entregou-se à suas pesquisas.
  Já estava refeito do golpe que havia recebido devido ao modo de pensar do amigo e preferiu ocupar seus pensamentos com seus estudos e com a ação do próximo domingo.
  A verdade era que Hanz parecia ver a vida muito inocentemente.
  Qualquer um pensaria da mesma forma que Renzo, no caso de algum dos integrantes oferecer algum perigo ao grupo uma medida mais drástica seria necessária, era evidente. Sua mágoa deveu-se ao fato de que jamais imaginaria que Renzo fosse capaz de fazer algo contra ele, mas era como o amigo havia lhe dito: e se fosse o contrário Hanz ficaria quieto vendo o amigo ameaçar sua segurança e a do grupo?

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