terça-feira, 22 de abril de 2014

Capítulo XXX



Enquanto Hanz passava por apuros dentro de sua própria casa as coisas não estavam nada tranqüilas em um bairro não muito distante dali.
  Paulo parecia estar tranqüilo, mas ao ouvir o som da Pajero estacionando em frente à sua casa uma ira incontrolável surgiu dentro dele, algo que provavelmente nem ele mesmo seria capaz de explicar. Pensamentos odiosos permeavam-lhe a mente e seu peito queimava com o ódio que crescia mais e mais.
  Os breves instantes que se seguiram até que Cibele adentrasse sua casa, para Paulo, pareciam décadas.
 - Olha só, quer dizer então que resolveu acompanhar seu marido? Pensei que fosse ficar lá com seus amiguinhos... – disse Paulo sentado no sofá assistindo televisão, quem o visse não era capaz de imaginar a fera que se debatia dentro dele.
  - Não começa Paulo, não tô a fim de brigar não. – disse Cibele seguindo para o quarto.
  - Eu tô falando com você, não me deixa falando sozinho!!! – gritou ele se levantando e seguindo-a.
  - Se é pra gente brigar eu prefiro não conversa com você. Não sei porque você tá fazendo assim meu amor, eu nunca te dei motivo pra isso. Fica calmo, você sabe que é você que eu amo, não tem motivo pra esse ciúme... – disse ela trocando de roupa, já no quarto.
  Parado na porta, Paulo parecia estar tomado por um ser diabólico, seu rosto chegava a estar desfigurado. Nele estava estampado um sorriso digno de uma criatura infernal, um sorriso que esboçava sarcasmo, alegria e ódio ao mesmo tempo. Seus olhos brilhavam de uma maneira estranha, jamais alguém vira Paulo daquela maneira.
  -Verdade Cibele, você nunca tinha me dado motivo pra isso até conhecer esses caras. Foi a partir daí que você mudou.
  - E o que eu tenho feito de errado pra você pensar mal de mim Paulo? Em que eu mudei? – disse ela guardando as roupas sem sequer olhar para seu marido.
  - O que você tem feito sua pilantra? Você ouve mais a eles do que ouve à mim porra!!! Em casa a gente conversa e chega à nossas conclusões, quando chega lá nas reuniões você muda tudo, esquece tudo o que eu te disse e nem dá atenção pro que eu falo lá, você acha que eu sou o quê? – disse ele aproximando-se dela.
  Cibele evitava olhar no rosto de Paulo, parecia estar enojada com o comportamento dele, mas tentava ainda argumentar, mesmo sem saber que era inútil com ele naquele estado.
  - Não somos nós que mandamos no grupo Paulo. Se a maioria decide mudar alguma coisa quem sou eu pra discordar? Minha opinião vale, eu sei, como a opinião de qualquer outro membro vale, mas por que eu vou discordar se eu concordo com as mudanças que eles propõem fazer? – fala ela sentando-se na cama.
  Foi quando ela o encarou e percebeu que ele não estava em seu estado normal. Seu semblante, seus gestos e sua maneira de falar eram como se fossem de outra pessoa.
  - Então porque você passa o tempo todo me enchendo o saco com isso? Desde a hora que você acorda até a hora que deitamos pra dormir é só nisso que você sabe falar, me aluga o dia todo com esses assuntos, só sabe falar disso. Quando finalmente eu penso que você entendeu e concordou com o que eu te disse daí é só chegar lá que você esquece tudo, muda de opinião, parece que tudo o que eu te disse é besteira. Então todo o tempo que eu perco falando com você é à toa né? Então não fala mais nada disso comigo, peça opinião pros caras, liga lá pra eles e conversa com eles, eu não quero mais saber da falar disso com você tá me ouvindo? – a essa altura Paulo já tinha perdido completamente o controle e estava aos berros. Seus olhos chegavam a faiscar de raiva.
  - Fala baixo Paulo, ninguém precisa saber que estamos brigando...
  - Falo baixo porra nenhuma!!! Ninguém tem nada a ver com a nossa vida Cibele!! Alguém por acaso paga as minhas contas? Então que vão todos pro inferno, eu falo na altura que eu quiser, eu tô na minha casa!!! – ele gritava ainda mais alto só para discordar da esposa.
  - Então fica gritando sozinho, eu não vou ficar agüentando isso. – Cibele levantou-se para sair do quarto, mas Paulo agarrou-a pelo braço e a jogou encima da cama violentamente.
   Cibele assustou-se, jamais seu companheiro havia agido daquela forma violenta com ela.
  - Você vai ouvir tudo o que eu tenho pra falar sua piranha!!! Você pensa que eu sou o quê pra você me tratar desse jeito? Eu sou seu marido, você tem que me obedecer. Não esquece que estamos sozinhos em casa, eu acabo com a tua raça!!! Quer em enfrentar é? Você pensa que é quem pra me enfrentar? – disse ele aproximando-se cara a cara com ela, ajoelhando-se na cama.
  Mesmo gritando enraivecido Paulo não deixava de ter aquele sorriso nos lábios, ele parecia alegrar-se com as palavras e o comportamento ofensivo que tinha.
  Cibele estava assustada, frente a frente com ele, ela podia ver seu rosto transtornado bem de perto. O que estaria se passando com Paulo? Mesmo eles já tendo brigado inúmeras vezes seu marido jamais havia utilizado aquelas palavras ríspidas.
   Mas ela era uma mulher valente e não se deixava subjugar por homem nenhum, infelizmente desconhecendo o perigo que corria com sua atitude ela resolveu enfrentá-lo.
  - Ah é? E você vai fazer o quê? Experimenta encostar um dedo que seja em mim pra você ver o que acontece com você. Antes de você dobrar a esquina você tá morto!!! Você tá achando que tá falando com quem heim? – disse ela sentando-se para encará-lo nos olhos.
  - E você vai chamar quem? Algum dos vagabundos dos seus ex-namorados? Ou o otário do seu pai? Chama então, quero ver você chamar com o pescoço quebrado, vadia imunda!!!
  Paulo estava tomado por um ódio indescritível, ele bufava de raiva, chegava a tremer-se todo tamanho ódio havia dentro dele.
  As palavras dele fizeram com que Cibele perdesse o controle.
  - Vadia imunda? Mas é essa vadia imunda que te sustenta seu gigolô ridículo. O que você ganha com esse seu empreguinho não paga nem a conta de água. Quem você pensa que é pra me ameaçar? Amanhã eu quero você fora dessa casa ou eu chamo meus primos pra te tirarem daqui. Pra mim chega Paulo, você passou dos limites. Quero você fora daqui!!
  Aquilo foi o limite para Paulo. Totalmente fora de si ele deu um soco na coxa de Cibele, que tomada pela forte dor que o golpe lhe impusera, abaixou-se sobre a perna chorando desesperadamente.
  Talvez pela dor do golpe, talvez pelas palavras que a agrediam, mas lágrimas abundantes rolavam pelo seu rosto moreno.
  Paulo levantou-se da cama e ficou olhando para aquela cena. A mulher que por tantos anos ele amara desesperadamente agora estava ali deitada, chorando, agredida, insultada, ameaçada...
  Mas ele não esboçava nenhum remorso, observava aquilo com um sorriso satânico de satisfação, seus olhos faiscavam de ira, seu corpo tremia-se todo como se estivesse a ponto de explodir. Parecia pensar em sua próxima atitude descontrolada, se é que no estado no qual se encontrava ele era capaz de pensar em alguma coisa.
  - Maldito!!!! Desgraçado!!!! Nojento!!! Como você se atreve a me bater seu canalha?? Sai já da minha casa, eu vou ligar pra polícia, você vai rodar na cadeia seu vagabundo!!! – gritou ela esticando seu braço e apanhando o telefone.
  Paulo não permitiria que ela telefonasse pra quem quer que fosse naquele momento e num rápido movimento tomou o telefone da mão dela, jogando-o violentamente no chão.
  - Você quer me ferrar vadia? Você não vai me ferrar não. Ninguém me ferra. Eu vou sair e você vai ver só quem ferra quem, você não perde por esperar... Eu vou acabar com você e com qualquer um que ouse me enfrentar... – disse Paulo saindo pelo quarto e indo até o armário onde eles costumavam guardar a arma e os explosivos que Jean fornecia para as ações do grupo.
  Cibele tentou levantar-se e segui-lo mas percebeu que a pancada desferida por Paulo havia-lhe machucado mais do que imaginava. Ela não conseguia firmar a perna no chão.
  Apoiando-se nos móveis ela conseguiu chegar até a porta do quarto, de onde pôde ver o transtornado marido saindo pela porta da sala carregando a sacola onde estavam guardados os explosivos e a arma.
  Até a maneira como ele se movimentava estava diferente. Estava ligeiramente recurvado, os olhos esbugalhados e seus gestos eram bruscos e rápidos, como se fosse um animal.
  - Meu Deus, o que ele vai fazer? – perguntou-se já se dirigindo, mesmo com dificuldade, até o telefone que estava no chão ali próximo.
  Por sorte ele não havia se quebrado e ela pôde telefonar para Renzo. O pessoal do grupo precisava saber o quanto antes que seu marido estava fora de controle e temia não apenas por ela, mas por todos eles.
  Ao sair pelo portão em direção ao seu carro Paulo deparou-se com alguns vizinhos ali parados preocupados com a discussão do casal que podia facilmente ser ouvida da rua.
  Olhou para eles e em seguida para o carro de Hanz que estava estacionado em frente à sua casa.
  - É por causa desses malditos... eles vão pagar... – resmungou ele.
  - O que tá acontecendo Paulo? Tá ficando louco é? – indagou um dos vizinhos.
  Paulo olhou dentro de seus olhos odiosamente, parecia estar prestar à atacá-lo também.
  - Não é da sua conta seu vagabundo. Vai cuidar da sua vida. O que eu faço dentro da minha casa é problema meu, você não tem nada com isso!! – e seguiu para seu carro.
  O vizinho irritou-se ainda mais com a atitude dele e se aproximou querendo tomar satisfação.
  - Você curte bater em mulher não é? Bate em mim então, vamos ver se você é bom mesmo!!! É machão não é? Com mulher é fácil, quero ver comigo... – era bem verdade que o rapaz também se encorajava devido aos diversos vizinhos que os rodeavam. Sabia que na hipótese de estar numa pior seria socorrido por eles.
  O confronto parecia inevitável, mas o rapaz foi obrigado a desistir de sua heróica investida ao ver Paulo sacar uma pistola prateada de dentro da bolsa que carregava.
  Apontando-a para o rosto do rapaz, seus olhos brilhando de ódio e o sorriso maquiavélico ainda estampado em seus lábios, Paulo o desafiou.
  - Quer se meter na minha vida seu bundão? Então vem!!! Vamos ver se você tem peito de aço... Quer me ferrar também é? Bunda-mole!!! Vem então, tô esperando... vem!!!!
  O pequeno grupo começou a se afastar lentamente, eles jamais imaginariam aquela atitude da parte de Paulo, que até então sempre se mostrou uma pessoa de bem, bastante calma e amiga de todos, jamais imaginariam que ele pudesse ter uma arma e agir daquela forma tanto com Cibele como com eles. O fato os surpreendeu.
  - Deve tá drogado... – comentou alguém do pequeno grupo assustado.
  O rapaz acompanhou o grupo e começou a afastar-se lentamente, o olhar medonho de Paulo indicava que ele poderia disparar a qualquer momento.
  - E então bando de filho da mãe, cadê os machão aí? Não tem mais nenhum? Vão procurar o que fazer e deixem a minha vida em paz, seus idiotas!!! Não tem nada melhor pra fazer não? Vocês não tem mulher em casa pra dar conta não? Fiquem longe de mim! Me deixem em paz!! – disse Paulo abrindo a porta do seu carro, sem deixar de apontar a arma para o grupo. 
  Olhou novamente com ódio para o carro de Hanz estacionado próximo ao seu e apontou a arma para ele, o disparo parecia ser inevitável.
  Mas o rapaz-herói fez novamente menção de se aproximar para tentar desarmá-lo, só que Paulo parecia ter olhos atrás da cabeça.
  - Miserável!!! Você tá pedindo pra levar um tiro no meio da cara né? Sai de perto do carro ou eu te encho de chumbo seu viado!!! Sai daqui porra!! – gritou Paulo a plenos pulmões apontando-lhe novamente a arma.
  Novamente o rapaz desistiu de tentar combatê-lo, não poderia enfrentar uma arma e juntou-se ao grupo que permanecia afastado do carro.
  Finalmente ele entrou em seu automóvel e desistiu de fazer algum disparo desnecessário no local que poderia complicá-lo ainda mais.
  - Alguém ligue pra polícia!!! Não deixem ele fugir!! – ouviu-se um grito próximo dali.
  Paulo acelerou e partiu em desabalada carreira, mas seu destino era incerto...
  Todos permaneceram atônitos, nunca imaginariam que Paulo pudesse agir daquela forma.
  - Meu Deus, o que deu nele? Nunca vi o Paulo desse jeito, você viram o jeito de ele olhar pra gente? Dá até medo... – comentou uma das vizinhas presentes.
  - Eu vi, parecia o diabo!!! Deus me livre!!! – comentou uma outra fazendo o sinal da cruz.
  -O infeliz deve tá drogado... – insistiu a voz.
  - Vamos ver se tá tudo bem lá dentro com a Cibele. – lembrou-se o rapaz que enfrentara Paulo.
  Foram todos até a porta da sala e ao chamar por Cibele perceberam que ela se encontrava ao telefone, já informando Renzo sobre o que tinha acontecido.
  Ela parecia estar bem, com exceção do hematoma que ela tinha em sua coxa direita, Paulo não a havia agredido na proporção que imaginavam, para a alegria de todos.
  Cibele tranqüilizou os vizinhos e agradeceu pela ajuda diante do ocorrido, dando uma breve explicação sobre a briga que acabaram de ter e sobre o carro parado em frente à sua casa. Lógico que as fofoqueiras de plantão deviam estar com a língua coçando para perguntar sobre ele, o carro em nada condizia com a situação dos moradores daquele bairro humilde.
  Quando finalmente pôde estar só, com uma bolsa de gelo sobre a perna, ela pôde pensar com mais calma sobre o que acabara de acontecer.
  Por diversas vezes eles já haviam brigado por causa de assuntos relacionados ao grupo, mas naquela noite havia sido diferente, o rapaz estava totalmente fora de controle, argumentava sobre coisas sem sentido, estava tomado de um ódio que ninguém jamais poderia imaginar haver dentro dele. Na verdade parecia ser uma outra pessoa.
  Costumavam discutir como todo casal, mas mantendo o bom senso, sem utilizarem-se de palavras de baixo calão, sem agressões verbais e muito menos físicas, mas naquela noite Paulo havia passado de todos os limites, havia insultado e agredido Cibele e isso ela não admitia da parte de nenhum homem, nem mesmo de seu pai.
  Cibele era doce, carinhosa e gentil, mas não admitira jamais que a ofendessem ou ao seu filho, quando isso acontecia transformava-se numa verdadeira leoa e talvez tenha sido isso que tenha inibido um ataque ainda mais agressivo de Paulo, o fato de ela ter demonstrado que não tinha nenhum medo dele deve tê-lo assustado.
  Ao observar seu olhar enfurecido e seu sorriso maligno ela sentiu medo, parecia estar diante de uma fera selvagem, de uma besta satânica. Ele estava desfigurado, tinha as feições bestiais de alguma criatura das trevas, mas seu íntimo pareceu dizer-lhe que, se deixasse o medo que sentia de alguma forma isso daria ainda mais força para Paulo, ou para o que quer que tenha tomado posse do corpo dele.
  Felizmente ele partira sem tê-la agredido ainda mais, mas encontrava-se magoada com as palavras que ele havia-lhe dirigido, e a dor que emanava de sua perna ferida parecia minar mais e mais a cada instante o amor que sempre sentira pelo companheiro.
  Divagava sobre o acontecido e sabia que havia dito algo horrível à Paulo, algo que jamais imaginara um dia jogar em sua cara: chamara-o de gigolô e vagabundo.
  Havia atingido seu ponto fraco quando dissera que o que ganhava com seu emprego não pagava nem sequer a conta de água da casa, e  talvez isso tenha-o deixado ainda mais transtornado, tenha-o deixado ainda mais fora de si ao ponto de agredi-la.
  Ela sabia que esse assunto o magoava bastante, pois apesar de fazer o que mais gostava na vida, trabalhar com música, aquilo não supria financeiramente as necessidades que sua família tinha, mas não sabia fazer outra coisa. Tudo o que ganhava, mesmo não sendo muito, era gasto com a casa e principalmente com Henrique, seu enteado.
  Arrependeu-se do que dissera, mas sentia imensa raiva pela forma como ele a ofendera, ela jamais havia-lhe dado motivos para isso, ao menos era isso que imaginava.
  Mesmo com lágrimas escorrendo por seu rosto e a perna ainda doendo por causa da agressão que sofrera Cibele sentiu o coração dilacerado pelo remorso e preocupava-se com o destino de seu companheiro.
  Paulo não estava em seu juízo perfeito e talvez cometesse alguma loucura.

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