Enquanto
Hanz passava por apuros dentro de sua própria casa as coisas não estavam nada
tranqüilas em um bairro não muito distante dali.
Paulo parecia estar tranqüilo, mas ao ouvir o
som da Pajero estacionando em frente à sua casa uma ira incontrolável surgiu
dentro dele, algo que provavelmente nem ele mesmo seria capaz de explicar.
Pensamentos odiosos permeavam-lhe a mente e seu peito queimava com o ódio que
crescia mais e mais.
Os breves instantes que se seguiram até que
Cibele adentrasse sua casa, para Paulo, pareciam décadas.
- Olha só, quer dizer então que resolveu
acompanhar seu marido? Pensei que fosse ficar lá com seus amiguinhos... – disse
Paulo sentado no sofá assistindo televisão, quem o visse não era capaz de
imaginar a fera que se debatia dentro dele.
- Não começa Paulo, não tô a fim de brigar
não. – disse Cibele seguindo para o quarto.
- Eu tô falando com você, não me deixa
falando sozinho!!! – gritou ele se levantando e seguindo-a.
- Se é pra gente brigar eu prefiro não
conversa com você. Não sei porque você tá fazendo assim meu amor, eu nunca te
dei motivo pra isso. Fica calmo, você sabe que é você que eu amo, não tem
motivo pra esse ciúme... – disse ela trocando de roupa, já no quarto.
Parado na porta, Paulo parecia estar tomado
por um ser diabólico, seu rosto chegava a estar desfigurado. Nele estava
estampado um sorriso digno de uma criatura infernal, um sorriso que esboçava
sarcasmo, alegria e ódio ao mesmo tempo. Seus olhos brilhavam de uma maneira
estranha, jamais alguém vira Paulo daquela maneira.
-Verdade Cibele, você nunca tinha me dado
motivo pra isso até conhecer esses caras. Foi a partir daí que você mudou.
- E o que eu tenho feito de errado pra você
pensar mal de mim Paulo? Em que eu mudei? – disse ela guardando as roupas sem
sequer olhar para seu marido.
- O que você tem feito sua pilantra? Você
ouve mais a eles do que ouve à mim porra!!! Em casa a gente conversa e chega à
nossas conclusões, quando chega lá nas reuniões você muda tudo, esquece tudo o
que eu te disse e nem dá atenção pro que eu falo lá, você acha que eu sou o
quê? – disse ele aproximando-se dela.
Cibele evitava olhar no rosto de Paulo,
parecia estar enojada com o comportamento dele, mas tentava ainda argumentar,
mesmo sem saber que era inútil com ele naquele estado.
- Não somos nós que mandamos no grupo Paulo.
Se a maioria decide mudar alguma coisa quem sou eu pra discordar? Minha opinião
vale, eu sei, como a opinião de qualquer outro membro vale, mas por que eu vou
discordar se eu concordo com as mudanças que eles propõem fazer? – fala ela
sentando-se na cama.
Foi quando ela o encarou e percebeu que ele
não estava em seu estado normal. Seu semblante, seus gestos e sua maneira de
falar eram como se fossem de outra pessoa.
- Então porque você passa o tempo todo me
enchendo o saco com isso? Desde a hora que você acorda até a hora que deitamos
pra dormir é só nisso que você sabe falar, me aluga o dia todo com esses
assuntos, só sabe falar disso. Quando finalmente eu penso que você entendeu e
concordou com o que eu te disse daí é só chegar lá que você esquece tudo, muda
de opinião, parece que tudo o que eu te disse é besteira. Então todo o tempo
que eu perco falando com você é à toa né? Então não fala mais nada disso
comigo, peça opinião pros caras, liga lá pra eles e conversa com eles, eu não
quero mais saber da falar disso com você tá me ouvindo? – a essa altura Paulo
já tinha perdido completamente o controle e estava aos berros. Seus olhos
chegavam a faiscar de raiva.
- Fala baixo Paulo, ninguém precisa saber que
estamos brigando...
- Falo baixo porra nenhuma!!! Ninguém tem
nada a ver com a nossa vida Cibele!! Alguém por acaso paga as minhas contas?
Então que vão todos pro inferno, eu falo na altura que eu quiser, eu tô na
minha casa!!! – ele gritava ainda mais alto só para discordar da esposa.
- Então fica gritando sozinho, eu não vou
ficar agüentando isso. – Cibele levantou-se para sair do quarto, mas Paulo
agarrou-a pelo braço e a jogou encima da cama violentamente.
Cibele assustou-se, jamais seu companheiro
havia agido daquela forma violenta com ela.
- Você vai ouvir tudo o que eu tenho pra falar
sua piranha!!! Você pensa que eu sou o quê pra você me tratar desse jeito? Eu
sou seu marido, você tem que me obedecer. Não esquece que estamos sozinhos em
casa, eu acabo com a tua raça!!! Quer em enfrentar é? Você pensa que é quem pra
me enfrentar? – disse ele aproximando-se cara a cara com ela, ajoelhando-se na
cama.
Mesmo gritando enraivecido Paulo não deixava
de ter aquele sorriso nos lábios, ele parecia alegrar-se com as palavras e o
comportamento ofensivo que tinha.
Cibele estava assustada, frente a frente com
ele, ela podia ver seu rosto transtornado bem de perto. O que estaria se
passando com Paulo? Mesmo eles já tendo brigado inúmeras vezes seu marido
jamais havia utilizado aquelas palavras ríspidas.
Mas ela era uma mulher valente e não se
deixava subjugar por homem nenhum, infelizmente desconhecendo o perigo que
corria com sua atitude ela resolveu enfrentá-lo.
- Ah é? E você vai fazer o quê? Experimenta
encostar um dedo que seja em mim pra você ver o que acontece com você. Antes de
você dobrar a esquina você tá morto!!! Você tá achando que tá falando com quem
heim? – disse ela sentando-se para encará-lo nos olhos.
- E você vai chamar quem? Algum dos
vagabundos dos seus ex-namorados? Ou o otário do seu pai? Chama então, quero
ver você chamar com o pescoço quebrado, vadia imunda!!!
Paulo estava tomado por um ódio
indescritível, ele bufava de raiva, chegava a tremer-se todo tamanho ódio havia
dentro dele.
As palavras dele fizeram com que Cibele
perdesse o controle.
- Vadia imunda? Mas é essa vadia imunda que
te sustenta seu gigolô ridículo. O que você ganha com esse seu empreguinho não
paga nem a conta de água. Quem você pensa que é pra me ameaçar? Amanhã eu quero
você fora dessa casa ou eu chamo meus primos pra te tirarem daqui. Pra mim
chega Paulo, você passou dos limites. Quero você fora daqui!!
Aquilo foi o limite para Paulo. Totalmente
fora de si ele deu um soco na coxa de Cibele, que tomada pela forte dor que o
golpe lhe impusera, abaixou-se sobre a perna chorando desesperadamente.
Talvez pela dor do golpe, talvez pelas
palavras que a agrediam, mas lágrimas abundantes rolavam pelo seu rosto moreno.
Paulo levantou-se da cama e ficou olhando
para aquela cena. A mulher que por tantos anos ele amara desesperadamente agora
estava ali deitada, chorando, agredida, insultada, ameaçada...
Mas ele não esboçava nenhum remorso,
observava aquilo com um sorriso satânico de satisfação, seus olhos faiscavam de
ira, seu corpo tremia-se todo como se estivesse a ponto de explodir. Parecia
pensar em sua próxima atitude descontrolada, se é que no estado no qual se
encontrava ele era capaz de pensar em alguma coisa.
- Maldito!!!! Desgraçado!!!! Nojento!!! Como
você se atreve a me bater seu canalha?? Sai já da minha casa, eu vou ligar pra
polícia, você vai rodar na cadeia seu vagabundo!!! – gritou ela esticando seu
braço e apanhando o telefone.
Paulo não permitiria que ela telefonasse pra
quem quer que fosse naquele momento e num rápido movimento tomou o telefone da
mão dela, jogando-o violentamente no chão.
- Você quer me ferrar vadia? Você não vai me
ferrar não. Ninguém me ferra. Eu vou sair e você vai ver só quem ferra quem,
você não perde por esperar... Eu vou acabar com você e com qualquer um que ouse
me enfrentar... – disse Paulo saindo pelo quarto e indo até o armário onde eles
costumavam guardar a arma e os explosivos que Jean fornecia para as ações do
grupo.
Cibele tentou levantar-se e segui-lo mas
percebeu que a pancada desferida por Paulo havia-lhe machucado mais do que
imaginava. Ela não conseguia firmar a perna no chão.
Apoiando-se nos móveis ela conseguiu chegar
até a porta do quarto, de onde pôde ver o transtornado marido saindo pela porta
da sala carregando a sacola onde estavam guardados os explosivos e a arma.
Até a maneira como ele se movimentava estava
diferente. Estava ligeiramente recurvado, os olhos esbugalhados e seus gestos
eram bruscos e rápidos, como se fosse um animal.
- Meu Deus, o que ele vai fazer? –
perguntou-se já se dirigindo, mesmo com dificuldade, até o telefone que estava
no chão ali próximo.
Por sorte ele não havia se quebrado e ela
pôde telefonar para Renzo. O pessoal do grupo precisava saber o quanto antes
que seu marido estava fora de controle e temia não apenas por ela, mas por
todos eles.
Ao sair pelo portão em direção ao seu carro
Paulo deparou-se com alguns vizinhos ali parados preocupados com a discussão do
casal que podia facilmente ser ouvida da rua.
Olhou para eles e em seguida para o carro de
Hanz que estava estacionado em frente à sua casa.
- É por causa desses malditos... eles vão
pagar... – resmungou ele.
- O que tá acontecendo Paulo? Tá ficando
louco é? – indagou um dos vizinhos.
Paulo olhou dentro de seus olhos odiosamente,
parecia estar prestar à atacá-lo também.
- Não é da sua conta seu vagabundo. Vai
cuidar da sua vida. O que eu faço dentro da minha casa é problema meu, você não
tem nada com isso!! – e seguiu para seu carro.
O vizinho irritou-se ainda mais com a atitude
dele e se aproximou querendo tomar satisfação.
- Você curte bater em mulher não é? Bate em
mim então, vamos ver se você é bom mesmo!!! É machão não é? Com mulher é fácil,
quero ver comigo... – era bem verdade que o rapaz também se encorajava devido
aos diversos vizinhos que os rodeavam. Sabia que na hipótese de estar numa pior
seria socorrido por eles.
O confronto parecia inevitável, mas o rapaz
foi obrigado a desistir de sua heróica investida ao ver Paulo sacar uma pistola
prateada de dentro da bolsa que carregava.
Apontando-a para o rosto do rapaz, seus olhos
brilhando de ódio e o sorriso maquiavélico ainda estampado em seus lábios,
Paulo o desafiou.
- Quer se meter na minha vida seu bundão?
Então vem!!! Vamos ver se você tem peito de aço... Quer me ferrar também é?
Bunda-mole!!! Vem então, tô esperando... vem!!!!
O pequeno grupo começou a se afastar
lentamente, eles jamais imaginariam aquela atitude da parte de Paulo, que até
então sempre se mostrou uma pessoa de bem, bastante calma e amiga de todos,
jamais imaginariam que ele pudesse ter uma arma e agir daquela forma tanto com
Cibele como com eles. O fato os surpreendeu.
- Deve tá drogado... – comentou alguém do
pequeno grupo assustado.
O rapaz acompanhou o grupo e começou a
afastar-se lentamente, o olhar medonho de Paulo indicava que ele poderia
disparar a qualquer momento.
- E então bando de filho da mãe, cadê os
machão aí? Não tem mais nenhum? Vão procurar o que fazer e deixem a minha vida
em paz, seus idiotas!!! Não tem nada melhor pra fazer não? Vocês não tem mulher
em casa pra dar conta não? Fiquem longe de mim! Me deixem em paz!! – disse
Paulo abrindo a porta do seu carro, sem deixar de apontar a arma para o
grupo.
Olhou novamente com ódio para o carro de Hanz
estacionado próximo ao seu e apontou a arma para ele, o disparo parecia ser
inevitável.
Mas o rapaz-herói fez novamente menção de se
aproximar para tentar desarmá-lo, só que Paulo parecia ter olhos atrás da
cabeça.
- Miserável!!! Você tá pedindo pra levar um
tiro no meio da cara né? Sai de perto do carro ou eu te encho de chumbo seu
viado!!! Sai daqui porra!! – gritou Paulo a plenos pulmões apontando-lhe
novamente a arma.
Novamente o rapaz desistiu de tentar
combatê-lo, não poderia enfrentar uma arma e juntou-se ao grupo que permanecia
afastado do carro.
Finalmente ele entrou em seu automóvel e
desistiu de fazer algum disparo desnecessário no local que poderia complicá-lo
ainda mais.
- Alguém ligue pra polícia!!! Não deixem ele
fugir!! – ouviu-se um grito próximo dali.
Paulo acelerou e partiu em desabalada
carreira, mas seu destino era incerto...
Todos permaneceram atônitos, nunca
imaginariam que Paulo pudesse agir daquela forma.
- Meu Deus, o que deu nele? Nunca vi o Paulo
desse jeito, você viram o jeito de ele olhar pra gente? Dá até medo... –
comentou uma das vizinhas presentes.
- Eu vi, parecia o diabo!!! Deus me livre!!!
– comentou uma outra fazendo o sinal da cruz.
-O infeliz deve tá drogado... – insistiu a
voz.
- Vamos ver se tá tudo bem lá dentro com a
Cibele. – lembrou-se o rapaz que enfrentara Paulo.
Foram todos até a porta da sala e ao chamar
por Cibele perceberam que ela se encontrava ao telefone, já informando Renzo
sobre o que tinha acontecido.
Ela parecia estar bem, com exceção do
hematoma que ela tinha em sua coxa direita, Paulo não a havia agredido na
proporção que imaginavam, para a alegria de todos.
Cibele tranqüilizou os vizinhos e agradeceu
pela ajuda diante do ocorrido, dando uma breve explicação sobre a briga que
acabaram de ter e sobre o carro parado em frente à sua casa. Lógico que as
fofoqueiras de plantão deviam estar com a língua coçando para perguntar sobre
ele, o carro em nada condizia com a situação dos moradores daquele bairro
humilde.
Quando finalmente pôde estar só, com uma
bolsa de gelo sobre a perna, ela pôde pensar com mais calma sobre o que acabara
de acontecer.
Por diversas vezes eles já haviam brigado por
causa de assuntos relacionados ao grupo, mas naquela noite havia sido
diferente, o rapaz estava totalmente fora de controle, argumentava sobre coisas
sem sentido, estava tomado de um ódio que ninguém jamais poderia imaginar haver
dentro dele. Na verdade parecia ser uma outra pessoa.
Costumavam discutir como todo casal, mas
mantendo o bom senso, sem utilizarem-se de palavras de baixo calão, sem
agressões verbais e muito menos físicas, mas naquela noite Paulo havia passado
de todos os limites, havia insultado e agredido Cibele e isso ela não admitia
da parte de nenhum homem, nem mesmo de seu pai.
Cibele era doce, carinhosa e gentil, mas não
admitira jamais que a ofendessem ou ao seu filho, quando isso acontecia
transformava-se numa verdadeira leoa e talvez tenha sido isso que tenha inibido
um ataque ainda mais agressivo de Paulo, o fato de ela ter demonstrado que não
tinha nenhum medo dele deve tê-lo assustado.
Ao
observar seu olhar enfurecido e seu sorriso maligno ela sentiu medo, parecia
estar diante de uma fera selvagem, de uma besta satânica. Ele estava
desfigurado, tinha as feições bestiais de alguma criatura das trevas, mas seu
íntimo pareceu dizer-lhe que, se deixasse o medo que sentia de alguma forma
isso daria ainda mais força para Paulo, ou para o que quer que tenha tomado
posse do corpo dele.
Felizmente ele partira sem tê-la agredido
ainda mais, mas encontrava-se magoada com as palavras que ele havia-lhe
dirigido, e a dor que emanava de sua perna ferida parecia minar mais e mais a
cada instante o amor que sempre sentira pelo companheiro.
Divagava sobre o acontecido e sabia que havia
dito algo horrível à Paulo, algo que jamais imaginara um dia jogar em sua cara:
chamara-o de gigolô e vagabundo.
Havia atingido seu ponto fraco quando dissera
que o que ganhava com seu emprego não pagava nem sequer a conta de água da
casa, e talvez isso tenha-o deixado
ainda mais transtornado, tenha-o deixado ainda mais fora de si ao ponto de
agredi-la.
Ela sabia que esse assunto o magoava
bastante, pois apesar de fazer o que mais gostava na vida, trabalhar com
música, aquilo não supria financeiramente as necessidades que sua família
tinha, mas não sabia fazer outra coisa. Tudo o que ganhava, mesmo não sendo
muito, era gasto com a casa e principalmente com Henrique, seu enteado.
Arrependeu-se do que dissera, mas sentia
imensa raiva pela forma como ele a ofendera, ela jamais havia-lhe dado motivos
para isso, ao menos era isso que imaginava.
Mesmo com lágrimas escorrendo por seu rosto e
a perna ainda doendo por causa da agressão que sofrera Cibele sentiu o coração
dilacerado pelo remorso e preocupava-se com o destino de seu companheiro.
Paulo não estava em seu juízo perfeito e
talvez cometesse alguma loucura.
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