terça-feira, 6 de maio de 2014

Capítulo XXXII


No interior de um automóvel estacionado na rua deserta um homem era massacrado pelos demônios que afligiam sua alma. O luar que adentrava pelo pára-brisas tornava visível seu rosto molhado pelas lágrimas que brotavam devido à suas recentes lembranças...
  - Por que meu Deus? Por quê? O que foi que eu fiz? – murmurava com a voz embargada.
  As lembranças invadiam sua mente e as imagens desfilavam diante de seus olhos como se fossem fantasmas atormentando-lhe a existência. Surgiam com uma riqueza de detalhes que ele mesmo era incapaz de entender pois ele não revia somente o sofrimento de Cibele, suas expressões de dor, tristeza e sofrimento, mas via também seu próprio semblante, o olhar repleto de cólera e o sorriso de satisfação diante das agressões que lançava sobre sua companheira.
  Não tinha condições de entender aquilo, sua mente transtornada pelas imagens e seu coração dilacerado cada vez mais o impediam de raciocinar sobre aquilo tudo.
  Estava dominado por aquelas lembranças: transpirava, chorava, desferia socos contra o volante do automóvel mas as cenas nunca desapareciam, elas estavam lá, enclausuradas dentro de sua mente para sempre.
  Ao ver-se mais uma vez entrando no automóvel em que agora estava ele julgava que aquela tortura estivesse chegando ao seu final, mas tudo recomeçava, desde o momento em que Cibele entrara pela sala sorrindo, na vã tentativa de acalmá-lo e evitar a briga que se seguiria, até aquele em que fugiu.
  - Aquele não era eu... não era eu... Por que meu Deus? Por que você deixou que eu fizesse isso tudo? Por quê? – murmurava entre soluços de desespero.
  Sentia-se como se fosse uma terceira pessoa naquela cena angustiante onde podia ver toda a cena, em todos seus detalhes. Vez por outra, durante as intermináveis repetições das mesmas, ele sentia o mesmo sentimento de gozo que sentira ao realizar cada ato agressivo. A dor que essas lembranças lhe impunham doíam-lhe no fundo da alma...
  Os flash´s já se repetiam a quase meia-hora e ele parecia estar no limiar de suas forças. Estava esgotado emocionalmente.
  Foi quando seus olhos perceberam de relance o objeto que reluzia insistentemente no banco do passageiro: a pistola de Jean.
  Fez-se então o silêncio...
  As cenas desapareceram de imediato e então ele se deu conta finalmente de onde estava. Olhou ao redor, parecia perdido. Como havia chegado até ali? Tudo estava deserto e morto.
  Nem mesmo as folhas das árvores se moviam e ele se atentou ao silêncio que agora havia não somente ali onde estava, mas também ao silêncio que havia em sua alma.
  Seus olhos estacionaram sobre a pistola que reluzia como que convidando-o para um último disparo. Foi quando sua mão abandonou o volante e fez menção de ir até ela...
  Enquanto sua mão lentamente deixava o volante para encaminhar-se até a arma ele tentava pensar no que estava acontecendo.
  Não se lembrava de como tinha chegado até aquela rua, mas sabia perfeitamente o que havia feito com Cibele e com os vizinhos que o abordaram ao sair de sua casa.
  Sua atenção então se voltou à sua mão, que no ar, se encaminhava relutante até a pistola que o convidava a tocá-la para um derradeiro gesto.
  - Meu Deus, o que estou pensando em fazer? O que tá acontecendo comigo? – murmurou ele desvencilhando-se do poder hipnótico da arma e segurando firmemente o volante como que temendo ser traído por uma de suas mãos.
  Voltou então seus olhos para o alto e pôde ver a majestosa lua que reinava soberana no céu. Aquela visão apaziguou-lhe a alma e por um instante sentiu uma infinita paz preencher seu ser. As cenas terríveis que o atormentavam pareciam não ter mais o poder de cravar-lhe punhais no coração e ele novamente sentiu-se esperançoso em poder consertar seu erro.
  Desaparecido o desespero sua mente novamente começava a funcionar e ele permaneceu pensativo por alguns instantes para decidir sobre o que deveria fazer naquele momento. Desculparia-se com Cibele e em seguida com os amigos do grupo, ele parecia agora conseguir ver o quão suas atitudes eram estúpidas e sem motivo. Sentiu vergonha de si mesmo por causa de tudo que fizera mas sabia que diante de um pedido de desculpas realmente sincero eles o perdoariam.
  Surgiu então um sorriso em seu rosto, como o sol a surgir após a tempestade.
  Guardou então a arma de volta à bolsa junto com o restante do material fornecido por Jean cessando assim seu brilho hipnotizante e rejeitando em definitivo seu insistente convite.
  Deu partida no carro, ainda sem saber para onde seguiria, mas os momentos de paz desapareceram assim que fez-se ouvir o som do motor.
  O choro desesperado de Cibele, o sorriso de satisfação em seus lábios diante do seu sofrimento... como uma avalanche tudo veio-lhe à mente, como um cataclisma.
  Mas os demônios que atormentavam sua alma tornaram a nova sessão de tortura ainda mais insuportável. Agora mesclavam as cenas de sofrimento de Cibele com seus próprios esbravejos de cólera, e mais, à tudo isso intercalavam cenas do seu passado quando em meio à momentos de felicidade a jovem pronunciara que o amava como jamais imaginara poder amar um homem.
  Seu peito parecia querer explodir e lágrimas ainda mais abundantes rolaram por seu rosto. Sentia-se o mais desprezível dos homens, aquele que era capaz de agredir impiedosamente a mulher que o amava.
  Novamente esmurrou o volante na ânsia de que esse gesto desesperado pudesse fazer com que aquelas cenas e a angústia que inundava seu peito desaparecessem.
  As cenas repetiam-se diante de seus olhos desenfreadamente, mesclando suas atitudes coléricas e as frases carinhosas daquela que ele agredira impiedosamente. O sorriso de Cibele ao olhar-lhe nos olhos enquanto declarava-se, seu choro quando debruçada sobre a perna golpeada por ele e seu sorriso nefasto deliciando-se com sua dor...
  Paulo não suportava mais tudo aquilo... num breve relampejo de consciência só as arma agora guardada veio-lhe à cabeça. Talvez ela fosse a única solução para fazer com que tudo aquele chegasse ao seu final...
  - Eu sou um maldito!! Um desgraçado!! – gritou ele a plenos pulmões sem importar-se que alguém pudesse notar sua presença naquela rua deserta. Mais uma vez já não era mais capaz de raciocinar. Sua mente novamente estava invadida pelo pesadelo em que estava imerso mesmo estando acordado.
  Um silêncio ainda mais absoluto se seguiu e dessa vez não era o brilho hipnotizante da arma ou do luar intenso que lhe chamava a atenção, mas sim, o brilho aterrorizante daquele olhar diabólico que ele avistou através do espelho retrovisor.
  Eram seus próprios olhos, os olhos que se deliciaram enquanto agredia sua amada Cibele, os olhos que indicavam que mais uma vez ele não era dono de sua razão.
  - Maldito seja eu pelo que fiz... Mas dessa vez não mais agredirei minha amada Cibele, mas sim, aqueles que fizeram com que eu me tornasse o que sou agora...
  O motor do carro ao ser ligado não trouxe consigo nenhuma mudança dessa vez, e Paulo seguiu pela rua deserta.
  Seu futuro não estava mais em suas mãos. Mais uma vez havia sucumbido diante das investidas de suas fera interior e agora ela era a responsável pelos seus atos...

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