No interior
de um automóvel estacionado na rua deserta um homem era massacrado pelos
demônios que afligiam sua alma. O luar que adentrava pelo pára-brisas tornava
visível seu rosto molhado pelas lágrimas que brotavam devido à suas recentes
lembranças...
- Por que meu Deus? Por quê? O que foi que eu
fiz? – murmurava com a voz embargada.
As lembranças invadiam sua mente e as imagens
desfilavam diante de seus olhos como se fossem fantasmas atormentando-lhe a
existência. Surgiam com uma riqueza de detalhes que ele mesmo era incapaz de
entender pois ele não revia somente o sofrimento de Cibele, suas expressões de
dor, tristeza e sofrimento, mas via também seu próprio semblante, o olhar
repleto de cólera e o sorriso de satisfação diante das agressões que lançava
sobre sua companheira.
Não tinha condições de entender aquilo, sua
mente transtornada pelas imagens e seu coração dilacerado cada vez mais o
impediam de raciocinar sobre aquilo tudo.
Estava dominado por aquelas lembranças:
transpirava, chorava, desferia socos contra o volante do automóvel mas as cenas
nunca desapareciam, elas estavam lá, enclausuradas dentro de sua mente para
sempre.
Ao ver-se mais uma vez entrando no automóvel
em que agora estava ele julgava que aquela tortura estivesse chegando ao seu
final, mas tudo recomeçava, desde o momento em que Cibele entrara pela sala
sorrindo, na vã tentativa de acalmá-lo e evitar a briga que se seguiria, até
aquele em que fugiu.
- Aquele não era eu... não era eu... Por que
meu Deus? Por que você deixou que eu fizesse isso tudo? Por quê? – murmurava
entre soluços de desespero.
Sentia-se como se fosse uma terceira pessoa
naquela cena angustiante onde podia ver toda a cena, em todos seus detalhes.
Vez por outra, durante as intermináveis repetições das mesmas, ele sentia o
mesmo sentimento de gozo que sentira ao realizar cada ato agressivo. A dor que
essas lembranças lhe impunham doíam-lhe no fundo da alma...
Os flash´s já se repetiam a quase meia-hora e
ele parecia estar no limiar de suas forças. Estava esgotado emocionalmente.
Foi quando seus olhos perceberam de relance o
objeto que reluzia insistentemente no banco do passageiro: a pistola de Jean.
Fez-se então o silêncio...
As cenas desapareceram de imediato e então
ele se deu conta finalmente de onde estava. Olhou ao redor, parecia perdido.
Como havia chegado até ali? Tudo estava deserto e morto.
Nem mesmo as folhas das árvores se moviam e
ele se atentou ao silêncio que agora havia não somente ali onde estava, mas
também ao silêncio que havia em sua alma.
Seus olhos estacionaram sobre a pistola que
reluzia como que convidando-o para um último disparo. Foi quando sua mão
abandonou o volante e fez menção de ir até ela...
Enquanto sua mão lentamente deixava o volante
para encaminhar-se até a arma ele tentava pensar no que estava acontecendo.
Não se lembrava de como tinha chegado até
aquela rua, mas sabia perfeitamente o que havia feito com Cibele e com os
vizinhos que o abordaram ao sair de sua casa.
Sua atenção então se voltou à sua mão, que no
ar, se encaminhava relutante até a pistola que o convidava a tocá-la para um
derradeiro gesto.
- Meu Deus, o que estou pensando em fazer? O
que tá acontecendo comigo? – murmurou ele desvencilhando-se do poder hipnótico
da arma e segurando firmemente o volante como que temendo ser traído por uma de
suas mãos.
Voltou então seus olhos para o alto e pôde
ver a majestosa lua que reinava soberana no céu. Aquela visão apaziguou-lhe a
alma e por um instante sentiu uma infinita paz preencher seu ser. As cenas
terríveis que o atormentavam pareciam não ter mais o poder de cravar-lhe punhais
no coração e ele novamente sentiu-se esperançoso em poder consertar seu erro.
Desaparecido o desespero sua mente novamente
começava a funcionar e ele permaneceu pensativo por alguns instantes para
decidir sobre o que deveria fazer naquele momento. Desculparia-se com Cibele e
em seguida com os amigos do grupo, ele parecia agora conseguir ver o quão suas
atitudes eram estúpidas e sem motivo. Sentiu vergonha de si mesmo por causa de
tudo que fizera mas sabia que diante de um pedido de desculpas realmente
sincero eles o perdoariam.
Surgiu então um sorriso em seu rosto, como o
sol a surgir após a tempestade.
Guardou então a arma de volta à bolsa junto
com o restante do material fornecido por Jean cessando assim seu brilho
hipnotizante e rejeitando em definitivo seu insistente convite.
Deu partida no carro, ainda sem saber para
onde seguiria, mas os momentos de paz desapareceram assim que fez-se ouvir o
som do motor.
O choro desesperado de Cibele, o sorriso de
satisfação em seus lábios diante do seu sofrimento... como uma avalanche tudo
veio-lhe à mente, como um cataclisma.
Mas os demônios que atormentavam sua alma
tornaram a nova sessão de tortura ainda mais insuportável. Agora mesclavam as
cenas de sofrimento de Cibele com seus próprios esbravejos de cólera, e mais, à
tudo isso intercalavam cenas do seu passado quando em meio à momentos de
felicidade a jovem pronunciara que o amava como jamais imaginara poder amar um
homem.
Seu peito parecia querer explodir e lágrimas
ainda mais abundantes rolaram por seu rosto. Sentia-se o mais desprezível dos
homens, aquele que era capaz de agredir impiedosamente a mulher que o amava.
Novamente esmurrou o volante na ânsia de que
esse gesto desesperado pudesse fazer com que aquelas cenas e a angústia que inundava
seu peito desaparecessem.
As cenas repetiam-se diante de seus olhos
desenfreadamente, mesclando suas atitudes coléricas e as frases carinhosas
daquela que ele agredira impiedosamente. O sorriso de Cibele ao olhar-lhe nos
olhos enquanto declarava-se, seu choro quando debruçada sobre a perna golpeada
por ele e seu sorriso nefasto deliciando-se com sua dor...
Paulo não suportava mais tudo aquilo... num
breve relampejo de consciência só as arma agora guardada veio-lhe à cabeça.
Talvez ela fosse a única solução para fazer com que tudo aquele chegasse ao seu
final...
- Eu sou um maldito!! Um desgraçado!! –
gritou ele a plenos pulmões sem importar-se que alguém pudesse notar sua
presença naquela rua deserta. Mais uma vez já não era mais capaz de raciocinar.
Sua mente novamente estava invadida pelo pesadelo em que estava imerso mesmo
estando acordado.
Um silêncio ainda mais absoluto se seguiu e
dessa vez não era o brilho hipnotizante da arma ou do luar intenso que lhe
chamava a atenção, mas sim, o brilho aterrorizante daquele olhar diabólico que
ele avistou através do espelho retrovisor.
Eram seus próprios olhos, os olhos que se
deliciaram enquanto agredia sua amada Cibele, os olhos que indicavam que mais
uma vez ele não era dono de sua razão.
- Maldito seja eu pelo que fiz... Mas dessa
vez não mais agredirei minha amada Cibele, mas sim, aqueles que fizeram com que
eu me tornasse o que sou agora...
O motor do carro ao ser ligado não trouxe
consigo nenhuma mudança dessa vez, e Paulo seguiu pela rua deserta.
Seu futuro não estava mais em suas mãos. Mais
uma vez havia sucumbido diante das investidas de suas fera interior e agora ela
era a responsável pelos seus atos...
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