Já eram quase
três da madrugada naquele humilde bairro da periferia e ao que tudo indicava a
vizinhança não se abalara com a gritaria que ocorrera a ponto de acionar a
polícia.
Para sorte de todos os envolvidos no
acontecimento a cidade estava silenciosa, sem sirenes que denunciariam a
chegada das autoridades, e isso dava tempo para que tudo fosse combinado
corretamente.
- ... quando
ele chegar aqui ele explica melhor, não de pra entender direito. Mas fique
sossegada Cibele. – explicou Hanz às garotas sem dar a notícia da possível
morte de Paulo.
- Tudo bem... – limitou-se a concordar Tatiana
que percebera nos olhos do rapaz que a versão não era bem aquela.
Cibele nada respondeu, seu sexto sentido
parecia ser poderoso e infelizmente o pressentimento que tivera estava certo,
mas por hora queriam evitar seu sofrimento.
Renzo observava ainda choroso o corpo sem
vida do seu amigo estendido na calçada fria enquanto ouvia as explicações de
Jean.
- ... então, presta bem atenção cara, você
diz que quando o cara fugiu você e o Paulo saíram atrás dele cada um em seu
carro e que, ao emboscá-los aqui, foram eles que acertaram o seu amigo, tá
entendendo? – falava ele com voz firme.
Renzo, bastante abalado, confirmava com a
cabeça sem dizer nada.
- Agora vai lá e liga pra polícia, eu vou
tirar todo nosso material daqui e fiquei de ir na casa do Hanz explicar o que
aconteceu. Olha cara, eu tô confiando em você, a segurança de todos nós,
inclusive a sua, depende de você agora. Faz do jeito que eu falei, vai lá. –
prosseguiu Jean dando um tapa no ombro dele, pegando a arma que estava em sua
cintura e indo recolher as pistolas e o explosivo.
O triste rapaz parecia reagir
automaticamente, foi até seu carro e pegou seu celular, ligando para a polícia
e indicando o local da tragédia em que infelizmente se encontrava.
Jean que aparentava nem ter se abalado com o
que havia acontecido recolheu os explosivos dos carros e partiu em silêncio,
tinha que esvair-se do local antes que a polícia chegasse.
Isso não demorou muito para acontecer e Renzo
estava sentado ao lado do corpo de Paulo.
Era estranho, mesmo com seu corpo envolto em
sangue, Paulo parecia estar apenas dormindo e que acordaria a qualquer
instante, mas infelizmente era apenas impressão de Renzo e as perguntas caíram
sobre ele como uma avalanche.
Confuso e gaguejando, Renzo respondeu à todas
elas de acordo com o que Jean havia-lhe dito e sua versão, a priori, foi aceita
pelos policiais que o conheciam e sabiam que ele era incapaz de tirar a vida de
uma pessoa.
Era evidente que em instantes a perícia
chegaria ao local para averiguar tudo o que ele havia dito mas tudo condizia
com sua versão, não haveria problemas visto que quem o ouvia era o mesmo
sargento que conversara com Hanz a pouco e por já conhecê-los dava total
crédito à versão apresentada.
O pai do forte rapaz, que com ele
permaneceria no local por um razoável tempo, foi avisado do ocorrido e logo
estava junto dele apoiando-o naquele momento difícil.
Finalmente o telefone de Hanz estava
funcionando normalmente e ele também recebeu a ligação do sargento que deu a
notícia sobre o acontecido e aproveitou para reforçar a necessidade de que o
rapaz estivesse o mais cedo possível na delegacia para fazer o boletim de
ocorrência.
Felizmente Cibele tinha conseguido dormir e
Hanz podia conversar com Tatiana sobre o que havia acontecido enquanto Jean não
chegava.
Deitado no colo na bela garota que acariciava
seus cabelos, como se tudo fosse um sonho, o assunto não podia ser outro.
- É triste o que aconteceu com o Paulo, mas
não deve ter tido outro jeito, Jean não atiraria nele à toa, apesar de tudo que
ele andava fazendo ele fazia parte do grupo... – comentava Tatiana chateada.
- Com certeza não. Me sinto um pouco culpado
por não ter percebido antes o que estava acontecendo com ele, mas eu também não
o conhecia tão bem assim pra poder notar a mudança no comportamento dele.
Tirando as agressões, ele era um cara legal... É uma pena que não tenhamos tido
tempo de poder ajudá-lo, ele acabou pagando pelas atitudes que certamente não
eram da vontade dele. Mas Deus sabe o que faz Tati, se terminou assim é porque
devia ser desse jeito.
- É, eu só temo pela Cibele, como será que
ela vai reagir? Tenho medo de dar a notícia pra ela mas sei vai sobrar pra mim,
sou a mais próxima à ela, não vai ter jeito.
- Se você quiser eu falo com ela Tati.
- Não Hanz, melhor eu conversar com ela.
Somos mulheres, sei lá... deixa que eu falo, mas não vamos nos preocupar com
isso, não adianta sofrer antes do tempo.
- Isso é verdade, espero que ela aceite bem.
Se ela tiver entendido um pouco do que eu conversei com vocês acho que ela
aceitará com mais calma. Mas não dá pra não sofrer, afinal de contas, ele era
marido dela.
- É verdade, sofrer ela vai sofrer, mas não
tem outro jeito. Mas sabe, o que está me preocupando mesmo é se a polícia
descobrir a verdade sobre tudo isso.
- Não estou totalmente tranqüilo também não
Tati, mas tudo foi pensado da melhor maneira possível. Uma das vantagens de
cidades pequenas é essa: quando conquistamos a confiança das autoridades
dificilmente ela é quebrada, nenhum de nós, nem eu e nem o Renzo, demos
problemas para a polícia, então tudo indica que estejam dando crédito pra
versão que demos. Só espero que não tenhamos nos esquecido de nada, mas acho
que não.
- É, parece que tudo se encaixa, mas tem um
problema Hanz: e se esses caras que vocês arrumaram para serem os bode-espiatórios
forem pegos? É claro que irão negar o envolvimento deles e aí?
- É verdade, eu não tinha pensado nisso ainda
Tati, mas acho difícil que isso aconteça. Os caras realmente devem estar bem
longe daqui e creio que não vão aparecer mais. Mesmo que os jornais noticiem
que eles sejam os culpados e eles fiquem sabendo disso não voltarão pra se
defender. Seria muito azar o nosso se isso acontecesse.
- É, seria mesmo. Eles não fariam isso não, é
difícil. É uma pena que tenha sido assim, mas Jean não teria feito o que fez à
toa, Paulo deve ter feito alguma coisa. Bom, vamos esperar ele chegar, daí ele
explica certinho. – dizendo isso Tatiana abaixou-se e carinhosamente beijou
Hanz, como para trazer tranqüilidade aos dois.
Novamente Hanz desejava que o tempo parasse e
ele permanecesse preso àquele momento infinitamente. Enquanto estava
romanticamente na companhia dela veio-lhe o pensamento de que Tatiana pudesse
novamente considerar aquilo tudo um erro e desejar colocar um ponto final, mas
os carinhos que ela lhe dispensava faziam com que essa idéia desaparecesse.
- Será que estou sonhando? – indagou ele.
- Como assim? – surpreendeu-se Tatiana.
- Estar aqui com você, desse jeito. Será que
isso tudo é um sonho ou está acontecendo mesmo? – explicou ele olhando-a nos
olhos.
- Bom, se for um sonho, eu estou tendo o
mesmo que você, e não quero acordar mais. – disse ela acariciando-lhe os
cabelos.
Aquela resposta parecia resumir tudo, não
havia a necessidade de maiores explicações, e a felicidade tomou conta de Hanz,
mesmo diante da morte do companheiro do grupo.
Mas Tatiana sabia que tinha mais explicações
a dar, e prosseguiu.
- Eu sei que você ficou chateado com o que eu
fiz da outra vez Hanz. Nem eu mesma entendi o porquê de eu ter agido daquela
maneira mas tudo o que eu posso fazer agora é compensar o mal que te fiz dando
todo o carinho que você merece, se você deixar...
Hanz ergueu sua mão e acariciou seu rosto.
- Por que eu não deixaria Tati? Você sabe que
eu fiquei chateado com a forma como você me deixou daquela vez, mas isso é
passado. Eu também tinha minhas encucações, meus preconceitos e tal, mas hoje
sei que tudo aquilo é besteira. Eu lutei por muito tempo contra o que eu sentia
por você, por motivos bestas e que hoje me envergonham, mas percebi que deveria
entregar-me ao que sinto quando me vi incapaz de esquecer aquela noite que
tivemos. Só sufoquei o que sinto por não saber o que se passava com você, por
temer entregar-me à um sentimento não correspondido que só me faria sofrer. Se
agora você está mesmo a fim de ficar comigo, sou todo seu.
Seus olhos não se desgrudavam enquanto Hanz
falava e Tatiana que sempre havia demonstrado frieza e insensibilidade agora se
emocionava com o que ouvia.
- Eu também quis esquecer aquela noite Hanz,
mas não consegui. A única que conhecia meu verdadeiro eu até então era a
Cibele, mas por algum motivo eu deixei que você também o conhecesse e percebi
que você se encantou por ele. Acho que foi isso que fez com que eu evitasse ter
alguma coisa com você. Infelizmente você tinha gostado de um lado meu que eu
não deixo transparecer e não pela que eu demonstro no dia-a-dia e eu sei que
você não gosta desse meu lado... – Tatiana abria seu coração.
- Entendo. Você sabe que esse seu lado
radical não me atrai Tati, mas também não quero que você mude seu jeito de ser
por minha causa. Acho que devemos gostar das pessoas da maneira como elas são e
não da maneira como queremos que elas sejam, só que agora estou confuso: como
eu posso ficar com você Tati, ainda mais depois de tudo isso que você me disse?
- Você pode ficar comigo porque eu joguei no
lixo minha armadura Hanz. O meu jeito que te encantou é o meu jeito verdadeiro,
mas que eu escondia.
Hanz não estava acreditando no que estava
ouvindo, o que a teria feito tomar aquela atitude? Ainda que fosse fazer essa pergunta ele se
aconchegou naquele colo que agora seria seu sempre que precisasse dele e
Tatiana percebeu o conforto que havia passado para ele.
- Poxa Tati, acho que não sei como explicar o
que estou sentindo... Mas será que você pode me contar o que te fez vestir isso
que você chama de armadura e também o que foi que te fez desistir dela?
Tatiana pensou um pouco, parecia hesitar em
revelar esse seu segredo, mas aproveitou que seu coração estava aberto naquele
momento, se deixasse para outra ocasião talvez não conseguisse lhe contar.
- Olha Hanz, é uma coisa que me machuca muito
relembrar, mas acho que você tem o direito de saber porque eu sei que se você
souber vai entender. – começou ela imersa em dolorosas lembranças.
- Não Tati, melhor não... – Hanz tentou
evitar que ela mergulhasse nessas dolorosas lembranças, mas foi impedido por
ela que colocou o dedo em sua boca, fazendo-o silenciar-se.
- Eu quero contar Hanz, eu quero... Olha...
quando eu era mais nova, tinha doze anos, eu ainda não utilizava essa
“armadura” que eu sei não te agradar. Eu era uma menina normal, como tantas
outras, como a Bianca, como qualquer outra sabe. Mas numa tarde eu fui atacada
por um cara, um cara que feriu muito mais que meu corpo, feriu minha alma.
Fiquei alguns dias no hospital internada devido à agressão que sofri, eu estava
muito mal... Quando pude voltar pra casa uma parte de mim parecia ter morrido.
Aquela menina delicada, carinhosa e gentil tinha sido arrancada de mim junto
com minha inocência. Mesmo já tendo se passado algumas semanas desde o que
aconteceu eu ainda parecia estar em transe, o mundo parecia ser outro, eu não o
via mais com os mesmos olhos...
Tatiana ficou em silêncio, como que dando uma
pausa para conseguir coragem de prosseguir.
Hanz estava com seus olhos marejados, jamais
imaginara que pudesse haver tanta dor dentro de Tatiana e via na atitude dela
de relembrar tudo aquilo para lhe contar a prova de que ela realmente desejava
ficar com ele.
- Se
isso já não fosse o suficiente para destruir aquela garota que existia, após
três semanas meu irmão foi assassinado, como você já sabe. A menininha que
todos gostavam tinha morrido de vez e por causa de toda essa amargura que eu
tinha dentro de mim eu comecei a me comportar desse jeito rebelde, comecei a
usar a armadura. Durante todos esses anos em que a vesti parece que o mal
jamais se aproximou de mim, ela foi uma proteção pra mim. As pessoas pareciam
ter medo, pareciam pensar duas vezes antes de tentar me prejudicar, antes de
tentar me sacanear. Foi a forma que encontrei para evitar sofrer de novo, nunca
mais seria a mocinha indefesa à mercê de bandidos ou de pessoas que quisessem
me fazer mal. Tive relacionamentos que nunca representaram nada de especial pra
mim, sem sentimentos, obedecia apenas meus impulsos e nada mais. Só que um dia
eu conheci você e aos poucos fui me encantando. Mas quando passei a te conhecer
melhor Hanz eu percebi que você não era como os caras com os quais eu costumava
me envolver. Você sempre demonstrou ser um cara que não se envolvia baseado
apenas em impulsos, mas sim em sentimentos, e que nós não daríamos certo porque
eu não era como você. Mas você tinha mexido comigo, eu não conseguia tirar você
da cabeça e então resolvi arriscar... Foi aquela noite que passamos juntos,
expus a menininha que até então eu acreditava estar morta para seduzi-lo,
fiquei com você acreditando que no dia seguinte minha encanação teria acabado e
que após saciar meus impulsos você sairia da minha cabeça. Não pensei em você,
sabia que você sairia machucado, mas não me importei porque estava preocupada
apenas comigo. Mas as coisas não saíram como eu esperava, e por mais que eu
escondesse isso, você continuava na minha cabeça e eu percebia o seu sofrimento,
sinal que gostava de mim de verdade e realmente não era como os outros caras
que conheci. Isso tudo fez com que eu descobrisse que havia uma falha na
armadura que eu usava, que mesmo vestindo ela eu podia sofrer, sofrer por você.
Se eu ainda era vulnerável, se ainda podia sofrer mesmo usando a armadura que
afastava o homem por quem me de apaixonei de mim ela agora se mostrava inútil.
Foi por isso que desisti dela, porque descobri que ela não era capaz de impedir
que eu sofresse e que jogando ela fora eu poderia ter comigo um cara que
gostava de mim de verdade, poderia ficar com quem eu estava apaixonada de
verdade: você.
Ambos estavam emocionados. Tatiana jamais se
sentira segura o suficiente para dizer tudo aquilo antes e Hanz agora entendia
os motivos que fizeram-na agir como agiu e mais, abrir-se daquela forma com
ele, contar-lhe tudo, sem medo.
Ele tentou levantar-se e beijá-la mas a dor
em seu peito o impediu. Não tinha problema, Tatiana abaixou-se e eles se
beijaram por vários minutos selando assim o amor que sentiam.
Deus realmente parecia ter ouvido os pedidos
de Hanz e também se compadecido com seu sofrimento pois agora entregava-lhe
algo que jamais tivera: uma mulher que o amava de verdade, que confiava nele o
suficiente para contar-lhe seus mais profundos segredos e mudar sua vida por
ele, algo que ele jamais tivera...
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