terça-feira, 24 de junho de 2014

Capítulo XXXIX


Já eram quase três da madrugada naquele humilde bairro da periferia e ao que tudo indicava a vizinhança não se abalara com a gritaria que ocorrera a ponto de acionar a polícia.
  Para sorte de todos os envolvidos no acontecimento a cidade estava silenciosa, sem sirenes que denunciariam a chegada das autoridades, e isso dava tempo para que tudo fosse combinado corretamente.
- ... quando ele chegar aqui ele explica melhor, não de pra entender direito. Mas fique sossegada Cibele. – explicou Hanz às garotas sem dar a notícia da possível morte de Paulo.
 - Tudo bem... – limitou-se a concordar Tatiana que percebera nos olhos do rapaz que a versão não era bem aquela.
  Cibele nada respondeu, seu sexto sentido parecia ser poderoso e infelizmente o pressentimento que tivera estava certo, mas por hora queriam evitar seu sofrimento.
  Renzo observava ainda choroso o corpo sem vida do seu amigo estendido na calçada fria enquanto ouvia as explicações de Jean.
  - ... então, presta bem atenção cara, você diz que quando o cara fugiu você e o Paulo saíram atrás dele cada um em seu carro e que, ao emboscá-los aqui, foram eles que acertaram o seu amigo, tá entendendo? – falava ele com voz firme.
  Renzo, bastante abalado, confirmava com a cabeça sem dizer nada.
  - Agora vai lá e liga pra polícia, eu vou tirar todo nosso material daqui e fiquei de ir na casa do Hanz explicar o que aconteceu. Olha cara, eu tô confiando em você, a segurança de todos nós, inclusive a sua, depende de você agora. Faz do jeito que eu falei, vai lá. – prosseguiu Jean dando um tapa no ombro dele, pegando a arma que estava em sua cintura e indo recolher as pistolas e o explosivo.
  O triste rapaz parecia reagir automaticamente, foi até seu carro e pegou seu celular, ligando para a polícia e indicando o local da tragédia em que infelizmente se encontrava.
  Jean que aparentava nem ter se abalado com o que havia acontecido recolheu os explosivos dos carros e partiu em silêncio, tinha que esvair-se do local antes que a polícia chegasse.
  Isso não demorou muito para acontecer e Renzo estava sentado ao lado do corpo de Paulo.
  Era estranho, mesmo com seu corpo envolto em sangue, Paulo parecia estar apenas dormindo e que acordaria a qualquer instante, mas infelizmente era apenas impressão de Renzo e as perguntas caíram sobre ele como uma avalanche.
  Confuso e gaguejando, Renzo respondeu à todas elas de acordo com o que Jean havia-lhe dito e sua versão, a priori, foi aceita pelos policiais que o conheciam e sabiam que ele era incapaz de tirar a vida de uma pessoa.
  Era evidente que em instantes a perícia chegaria ao local para averiguar tudo o que ele havia dito mas tudo condizia com sua versão, não haveria problemas visto que quem o ouvia era o mesmo sargento que conversara com Hanz a pouco e por já conhecê-los dava total crédito à versão apresentada.
  O pai do forte rapaz, que com ele permaneceria no local por um razoável tempo, foi avisado do ocorrido e logo estava junto dele apoiando-o naquele momento difícil.
  Finalmente o telefone de Hanz estava funcionando normalmente e ele também recebeu a ligação do sargento que deu a notícia sobre o acontecido e aproveitou para reforçar a necessidade de que o rapaz estivesse o mais cedo possível na delegacia para fazer o boletim de ocorrência.
  Felizmente Cibele tinha conseguido dormir e Hanz podia conversar com Tatiana sobre o que havia acontecido enquanto Jean não chegava.
  Deitado no colo na bela garota que acariciava seus cabelos, como se tudo fosse um sonho, o assunto não podia ser outro.
  - É triste o que aconteceu com o Paulo, mas não deve ter tido outro jeito, Jean não atiraria nele à toa, apesar de tudo que ele andava fazendo ele fazia parte do grupo... – comentava Tatiana chateada.
  - Com certeza não. Me sinto um pouco culpado por não ter percebido antes o que estava acontecendo com ele, mas eu também não o conhecia tão bem assim pra poder notar a mudança no comportamento dele. Tirando as agressões, ele era um cara legal... É uma pena que não tenhamos tido tempo de poder ajudá-lo, ele acabou pagando pelas atitudes que certamente não eram da vontade dele. Mas Deus sabe o que faz Tati, se terminou assim é porque devia ser desse jeito.
  - É, eu só temo pela Cibele, como será que ela vai reagir? Tenho medo de dar a notícia pra ela mas sei vai sobrar pra mim, sou a mais próxima à ela, não vai ter jeito.
  - Se você quiser eu falo com ela Tati.
  - Não Hanz, melhor eu conversar com ela. Somos mulheres, sei lá... deixa que eu falo, mas não vamos nos preocupar com isso, não adianta sofrer antes do tempo.
  - Isso é verdade, espero que ela aceite bem. Se ela tiver entendido um pouco do que eu conversei com vocês acho que ela aceitará com mais calma. Mas não dá pra não sofrer, afinal de contas, ele era marido dela.
  - É verdade, sofrer ela vai sofrer, mas não tem outro jeito. Mas sabe, o que está me preocupando mesmo é se a polícia descobrir a verdade sobre tudo isso.
  - Não estou totalmente tranqüilo também não Tati, mas tudo foi pensado da melhor maneira possível. Uma das vantagens de cidades pequenas é essa: quando conquistamos a confiança das autoridades dificilmente ela é quebrada, nenhum de nós, nem eu e nem o Renzo, demos problemas para a polícia, então tudo indica que estejam dando crédito pra versão que demos. Só espero que não tenhamos nos esquecido de nada, mas acho que não.
  - É, parece que tudo se encaixa, mas tem um problema Hanz: e se esses caras que vocês arrumaram para serem os bode-espiatórios forem pegos? É claro que irão negar o envolvimento deles e aí?
  - É verdade, eu não tinha pensado nisso ainda Tati, mas acho difícil que isso aconteça. Os caras realmente devem estar bem longe daqui e creio que não vão aparecer mais. Mesmo que os jornais noticiem que eles sejam os culpados e eles fiquem sabendo disso não voltarão pra se defender. Seria muito azar o nosso se isso acontecesse.
  - É, seria mesmo. Eles não fariam isso não, é difícil. É uma pena que tenha sido assim, mas Jean não teria feito o que fez à toa, Paulo deve ter feito alguma coisa. Bom, vamos esperar ele chegar, daí ele explica certinho. – dizendo isso Tatiana abaixou-se e carinhosamente beijou Hanz, como para trazer tranqüilidade aos dois.
  Novamente Hanz desejava que o tempo parasse e ele permanecesse preso àquele momento infinitamente. Enquanto estava romanticamente na companhia dela veio-lhe o pensamento de que Tatiana pudesse novamente considerar aquilo tudo um erro e desejar colocar um ponto final, mas os carinhos que ela lhe dispensava faziam com que essa idéia desaparecesse.
  - Será que estou sonhando? – indagou ele.
  - Como assim? – surpreendeu-se Tatiana.
  - Estar aqui com você, desse jeito. Será que isso tudo é um sonho ou está acontecendo mesmo? – explicou ele olhando-a nos olhos.
  - Bom, se for um sonho, eu estou tendo o mesmo que você, e não quero acordar mais. – disse ela acariciando-lhe os cabelos.
  Aquela resposta parecia resumir tudo, não havia a necessidade de maiores explicações, e a felicidade tomou conta de Hanz, mesmo diante da morte do companheiro do grupo.
  Mas Tatiana sabia que tinha mais explicações a dar, e prosseguiu.
  - Eu sei que você ficou chateado com o que eu fiz da outra vez Hanz. Nem eu mesma entendi o porquê de eu ter agido daquela maneira mas tudo o que eu posso fazer agora é compensar o mal que te fiz dando todo o carinho que você merece, se você deixar...
  Hanz ergueu sua mão e acariciou seu rosto.
  - Por que eu não deixaria Tati? Você sabe que eu fiquei chateado com a forma como você me deixou daquela vez, mas isso é passado. Eu também tinha minhas encucações, meus preconceitos e tal, mas hoje sei que tudo aquilo é besteira. Eu lutei por muito tempo contra o que eu sentia por você, por motivos bestas e que hoje me envergonham, mas percebi que deveria entregar-me ao que sinto quando me vi incapaz de esquecer aquela noite que tivemos. Só sufoquei o que sinto por não saber o que se passava com você, por temer entregar-me à um sentimento não correspondido que só me faria sofrer. Se agora você está mesmo a fim de ficar comigo, sou todo seu.
  Seus olhos não se desgrudavam enquanto Hanz falava e Tatiana que sempre havia demonstrado frieza e insensibilidade agora se emocionava com o que ouvia.
  - Eu também quis esquecer aquela noite Hanz, mas não consegui. A única que conhecia meu verdadeiro eu até então era a Cibele, mas por algum motivo eu deixei que você também o conhecesse e percebi que você se encantou por ele. Acho que foi isso que fez com que eu evitasse ter alguma coisa com você. Infelizmente você tinha gostado de um lado meu que eu não deixo transparecer e não pela que eu demonstro no dia-a-dia e eu sei que você não gosta desse meu lado... – Tatiana abria seu coração.
  - Entendo. Você sabe que esse seu lado radical não me atrai Tati, mas também não quero que você mude seu jeito de ser por minha causa. Acho que devemos gostar das pessoas da maneira como elas são e não da maneira como queremos que elas sejam, só que agora estou confuso: como eu posso ficar com você Tati, ainda mais depois de tudo isso que você me disse?
  - Você pode ficar comigo porque eu joguei no lixo minha armadura Hanz. O meu jeito que te encantou é o meu jeito verdadeiro, mas que eu escondia.
  Hanz não estava acreditando no que estava ouvindo, o que a teria feito tomar aquela atitude?  Ainda que fosse fazer essa pergunta ele se aconchegou naquele colo que agora seria seu sempre que precisasse dele e Tatiana percebeu o conforto que havia passado para ele.
  - Poxa Tati, acho que não sei como explicar o que estou sentindo... Mas será que você pode me contar o que te fez vestir isso que você chama de armadura e também o que foi que te fez desistir dela?
  Tatiana pensou um pouco, parecia hesitar em revelar esse seu segredo, mas aproveitou que seu coração estava aberto naquele momento, se deixasse para outra ocasião talvez não conseguisse lhe contar.
  - Olha Hanz, é uma coisa que me machuca muito relembrar, mas acho que você tem o direito de saber porque eu sei que se você souber vai entender. – começou ela imersa em dolorosas lembranças.
  - Não Tati, melhor não... – Hanz tentou evitar que ela mergulhasse nessas dolorosas lembranças, mas foi impedido por ela que colocou o dedo em sua boca, fazendo-o silenciar-se.
  - Eu quero contar Hanz, eu quero... Olha... quando eu era mais nova, tinha doze anos, eu ainda não utilizava essa “armadura” que eu sei não te agradar. Eu era uma menina normal, como tantas outras, como a Bianca, como qualquer outra sabe. Mas numa tarde eu fui atacada por um cara, um cara que feriu muito mais que meu corpo, feriu minha alma. Fiquei alguns dias no hospital internada devido à agressão que sofri, eu estava muito mal... Quando pude voltar pra casa uma parte de mim parecia ter morrido. Aquela menina delicada, carinhosa e gentil tinha sido arrancada de mim junto com minha inocência. Mesmo já tendo se passado algumas semanas desde o que aconteceu eu ainda parecia estar em transe, o mundo parecia ser outro, eu não o via mais com os mesmos olhos...
  Tatiana ficou em silêncio, como que dando uma pausa para conseguir coragem de prosseguir.
  Hanz estava com seus olhos marejados, jamais imaginara que pudesse haver tanta dor dentro de Tatiana e via na atitude dela de relembrar tudo aquilo para lhe contar a prova de que ela realmente desejava ficar com ele.
  - Se isso já não fosse o suficiente para destruir aquela garota que existia, após três semanas meu irmão foi assassinado, como você já sabe. A menininha que todos gostavam tinha morrido de vez e por causa de toda essa amargura que eu tinha dentro de mim eu comecei a me comportar desse jeito rebelde, comecei a usar a armadura. Durante todos esses anos em que a vesti parece que o mal jamais se aproximou de mim, ela foi uma proteção pra mim. As pessoas pareciam ter medo, pareciam pensar duas vezes antes de tentar me prejudicar, antes de tentar me sacanear. Foi a forma que encontrei para evitar sofrer de novo, nunca mais seria a mocinha indefesa à mercê de bandidos ou de pessoas que quisessem me fazer mal. Tive relacionamentos que nunca representaram nada de especial pra mim, sem sentimentos, obedecia apenas meus impulsos e nada mais. Só que um dia eu conheci você e aos poucos fui me encantando. Mas quando passei a te conhecer melhor Hanz eu percebi que você não era como os caras com os quais eu costumava me envolver. Você sempre demonstrou ser um cara que não se envolvia baseado apenas em impulsos, mas sim em sentimentos, e que nós não daríamos certo porque eu não era como você. Mas você tinha mexido comigo, eu não conseguia tirar você da cabeça e então resolvi arriscar... Foi aquela noite que passamos juntos, expus a menininha que até então eu acreditava estar morta para seduzi-lo, fiquei com você acreditando que no dia seguinte minha encanação teria acabado e que após saciar meus impulsos você sairia da minha cabeça. Não pensei em você, sabia que você sairia machucado, mas não me importei porque estava preocupada apenas comigo. Mas as coisas não saíram como eu esperava, e por mais que eu escondesse isso, você continuava na minha cabeça e eu percebia o seu sofrimento, sinal que gostava de mim de verdade e realmente não era como os outros caras que conheci. Isso tudo fez com que eu descobrisse que havia uma falha na armadura que eu usava, que mesmo vestindo ela eu podia sofrer, sofrer por você. Se eu ainda era vulnerável, se ainda podia sofrer mesmo usando a armadura que afastava o homem por quem me de apaixonei de mim ela agora se mostrava inútil. Foi por isso que desisti dela, porque descobri que ela não era capaz de impedir que eu sofresse e que jogando ela fora eu poderia ter comigo um cara que gostava de mim de verdade, poderia ficar com quem eu estava apaixonada de verdade: você.
  Ambos estavam emocionados. Tatiana jamais se sentira segura o suficiente para dizer tudo aquilo antes e Hanz agora entendia os motivos que fizeram-na agir como agiu e mais, abrir-se daquela forma com ele, contar-lhe tudo, sem medo.
  Ele tentou levantar-se e beijá-la mas a dor em seu peito o impediu. Não tinha problema, Tatiana abaixou-se e eles se beijaram por vários minutos selando assim o amor que sentiam.
  Deus realmente parecia ter ouvido os pedidos de Hanz e também se compadecido com seu sofrimento pois agora entregava-lhe algo que jamais tivera: uma mulher que o amava de verdade, que confiava nele o suficiente para contar-lhe seus mais profundos segredos e mudar sua vida por ele, algo que ele jamais tivera...

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