A manhã seguinte estava nebulosa, como se os
céus estivessem prestes a derramar suas lágrimas lamentando a morte de Paulo.
Tatiana tinha levado Cibele até a casa dela,
onde a moça pretendia trocar de roupa e ir trabalhar mesmo estando muito
preocupada com seu marido. Ninguém havia lhe contado sobre o terrível
acontecimento e Tatiana pretendia deixá-la a par de tudo assim que chegassem ao
seu destino pois estariam sozinhas, e ela preferia que fosse assim.
Hanz ainda dormia quando partiram mas havia
telefonado para Renzo durante a madrugada indagando sobre o andamento das
coisas. O amigo dissera-lhe que o sargento também havia lhe dito que fosse à
delegacia pela manhã para dar seu depoimento e fazer o boletim de ocorrência, e
como Hanz também teria que comparecer ao local, combinaram de irem juntos até
lá tanto porque Hanz não podia dirigir como para combinar sobre o que diriam.
A versão não poderia ser mudada, mas Hanz
ainda temia que alguma contradição colocasse em perigo a segurança do grupo.
Renzo estava bastante abatido quando, por
volta das nove horas, chegou à casa de Hanz.
Assim que se encontraram eles se abraçaram, o
corpulento rapaz estava bastante abalado com o que acontecera com seu amigo.
Sentados na sala, puderam conversar melhor.
- ... não sei porque ele fez aquilo fiote. Se
ele tivesse feito o que o Jean disse nada disso teria acontecido. Ele morreu
praticamente nos meus braços fiu... – Renzo chorava enquanto explicava ao amigo
o que havia acontecido.
- Eu imagino como você deva estar se sentindo
Renzo, mas fica calmo meu. Deus sabe o que faz. Pense bem: era ele ou vocês,
não havia outra coisa a fazer.
- O Jean ainda tentou chegar nele e tirar a
arma, mas tudo foi muito estranho, o Paulo percebeu que ele estava chegando
perto... Na verdade ele estava muito estranho fiote, eu nunca tinha visto ele
daquele jeito. O jeito como ele falava, como se comportava... parecia uma outra
pessoa, não era o Paulão que eu conhecia...
- Foi a mesma coisa que a Cibele me disse,
ele parecia estar tomado por alguma coisa. Olha, se tiver com paciência meu, eu
queria te explicar algumas coisas, acho que depois de ouvir o que eu tenho pra
falar vai se sentir um pouco melhor...
O amigo ficou em silêncio esperando pelas
palavras de Hanz que lhe explicou o mesmo que havia explicado para Tatiana e
Cibele durante a madrugada.
- Você acha que pode ter acontecido isso com
ele fiote? – indagou ele indignado.
- É, acho que sim. Infelizmente eu não
percebi isso antes, eu não o conhecia muito bem. Mas você e a Cibele parece que
notaram isso, vocês o conheciam bem melhor do que eu. Acho que pode ter sido
isso sim meu.
- E a Cibele, como ela tá?
- Não sei, a Tatiana foi com ela pra casa e
ia contar tudo lá, elas dormiram aqui hoje. A Cibele estava preocupada com ele,
mas pretendia ir trabalhar normalmente, só que isso não vai acontecer. Só
espero que ela reaja bem.
- É, eu também. Será que ela pode dar com a
língua nos dentes?
- Não sei, esse é meu medo. Mas acho que não,
se ela fizer isso estará se complicando também, queira ou não estamos todos
juntos nisso...
- É, espero que a Tatiana consiga acalmá-la.
Bom fiote, falando nisso, já tá na hora de ir pra delegacia. Vamos manter a
versão que eu dei pro sargento e tomar cuidado para que a gente não faça nada
de errado. Temos que pensar bem no que vamos falar.
- Eu sei, vamos indo então, conversamos sobre
isso no caminho...
Na casa de Cibele a pobre garota não se
conformava com o terrível destino de seu marido.
- Como Deus pôde deixar que isso acontecesse
Tati? Ele estava fora de si, não era responsável por seus atos, por que Deus
não castigou aquele que o atormentava? Que culpa Paulo tinha nisso tudo? –
chorava ela revoltando-se.
- Se estava acontecendo o que Hanz disse, ele
realmente não tinha culpa do que estava fazendo, mas quem somos nós para
julgarmos o que Deus faz Ci? É como o Hanz me disse: a única coisa que podemos
fazer é aceitar, ele sabe o que faz. Eu sei que dói muito, eu sei muito bem o
que você está sentindo amiga, e por mais que eu tenha me revoltado quando toda
aquela desgraça aconteceu comigo, não adiantou nada, meu irmão não voltou pra
mim e o maldito que me atacou não pagou pelo mal que me fez. Eu só peço que
você tenha calma minha amiga, o que aconteceu não pode mais ser mudado,
infelizmente.
- Aceitar? Como eu posso aceitar tamanha
injustiça Tati? E no meu caso é diferente, eu sei quem matou o Paulo e posso
fazer com que ele pague pelo que fez.
- Fique calma Ci, as coisas não são assim. Se
o Jean fez o que fez é porque não teve outro jeito. Você mesma viu como o Paulo
estava, se nós não tivéssemos feito alguma coisa ele teria te matado Ci, você
mesma presenciou isso. O Jean não tem culpa, se ele fez o que fez foi para
defender ele mesmo e o Renzo, pode ter certeza disso. Não fique com raiva dele,
deixe as coisas como estão, você está se esquecendo de que todos nós estamos
envolvidos nisso? Se você denunciar o Jean pela morte do Paulo todos nós
estaremos ferrados, não se esqueça disso. – Tatiana tinha pressa em fazer com
que Cibele desistisse da idéia de denunciar Jean pelo acontecido pois a irmã
dela estava a caminho dali.
Cibele parou um pouco para pensar nas
palavras da amiga, ela tinha razão, o fato de denunciar o companheiro do grupo
apenas complicaria ainda mais a situação.
- É verdade Tati, não posso fazer isso. Mas
não foi justo o que aconteceu com o Paulo, ele não podia ter morrido, como Deus
permitiu que isso acontecesse?
- Foi uma fatalidade Ci, foi uma fatalidade.
Mas fique calma, Deus sabe o que faz, não podemos saber o que ele reserva pra
cada um de nós, e se as coisas aconteceram desse jeito é porque foi melhor
assim.
Nesse instante o telefone tocou, era da delegacia.
Estava sendo solicitada a presença dela, como esposa do falecido ela deveria
dar conta de toda a papelada necessária.
Cibele telefonou então para sua irmã pedindo
que ela a encontrasse na delegacia.
- Você está bem Cibele? Posso confiar em você
minha amiga? – certificava-se Tatiana, ainda preocupada.
- Eu tô bem sim Tati, pode ficar sossegada.
Farei conforme o que está combinado, não posso colocar a segurança de todos nós
em risco, isso não trará o Paulo de volta. Vou telefonar para os parentes dele,
o pessoal tem que saber sobre o que aconteceu.
Cibele telefonou então para a prima da mãe de
Paulo que era o único familiar que o falecido tinha na cidade e, em seguida,
ambas foram para a delegacia usando o carro de Hanz.
Lá chegando encontraram-se com Hanz sentado
no corredor, que após ter dado seu depoimento aguardava seu amigo terminar de
fazer o mesmo.
- Poxa Cibele, meus pêsames... – disse Hanz
abraçando a amiga e recebendo um sinal de positivo de Tatiana que o
tranqüilizou.
- Não sei como isso pôde acontecer Hanz, como
Deus deixou que isso acontecesse? – dizia a chorosa garota ainda inconformada.
- Olha Cibele, mais tarde conversamos sobre
isso pode ser? Tudo tem uma explicação. Eu sei que nada do que eu disser
diminuirá a dor que você tá sentindo, a única coisa que posso te oferecer agora
é toda a minha ajuda no que você precisar...
- Obrigada Hanz, é muito difícil aceitar o
que aconteceu, mas é melhor conversarmos depois mesmo, aqui não é um lugar
ideal. – agradeceu ela mostrando-se lúcida em relação aos problemas
relacionados ao grupo.
Na sala do delegado, Renzo passava por
apuros.
- ... vocês seguranças tem essa mania de
querer resolver tudo do jeito de vocês porra. Vocês têm que entender que não
são autoridade nenhuma Renzo, o que você fez foi errado e você sabe disso.
Quando o cara apareceu na casa do seu amigo, o Hanz, vocês já deviam ter
acionado a polícia e não tentado resolver as coisas do jeito de vocês. Você viu
o que acabou acontecendo? Por causa disso seu amigo agora está morto. Deveria
ter telefonado pra polícia, somos nós quem cuidados desses casos e mais
ninguém. Espero que isso tenha servido como lição e que, se houver a
necessidade, da próxima vez você chame a polícia e não tome nenhuma medida pro
conta própria. Menos mal que só o Paulo tenha sido alvejado, poderia ter sido
você também e só Deus sabe quem mais podia ter se machucado nessa história
toda. – falava o delegado nervoso.
- Eu sei disso seu delegado, eu sei disso. Na
hora não sei o que foi que me deu, eu queria pegar o cara a qualquer custo.
Poxa, da última vez que vocês prenderam o cara ele fugiu, isso me deixou puto
da vida, eu queria dar um jeito nisso, não imaginei que fosse acabar assim, se
eu soubesse que meu amigo iria morrer a gente não teria ido atrás do cara. Mas
não adianta ficar pensando nisso agora, nada vai trazer o Paulo de volta, nada!
– falava o choroso rapaz cabisbaixo. O remorso corroia seu íntimo pois sabia
que nada daquilo que ele falava era mentira, mas era necessário que assim o fosse
para que ele e seus amigos não se complicassem.
- Realmente, agora nada vai mudar o que
aconteceu. Eu sei como você deve estar revoltado com tudo isso rapaz, mas você
agiu mal e sabe disso. Nunca mais faça isso de novo tá me ouvindo? De assuntos
assim é a polícia quem cuida, mais ninguém. Bom, seu depoimento já foi
registrado, agora é só torcermos para o meliante não ter sumido de novo pra que
consigamos botar as mãos nele. Pode se retirar, parece que a esposa do falecido
está aí e quero conversar com ela, me dê licença.
Renzo sentiu um frio na barriga ao saber que
Cibele seria a próxima a ser ouvida, ele não sabia como ela havia reagido
diante do acontecido e temia que ela contasse a verdade.
Ao sair da sala ele se deparou com a abatida
garota e ambos se abraçaram.
- Fique tranqüilo Renzo, eu sei que você não
teve culpa de nada, você sempre cuidou do Paulo e sei que deve ter feito de
tudo pra que isso não acontecesse. Vamos deixar para conversar depois tá? –
cochichou ela em seu ouvido.
Renzo caiu em lágrimas, queira ou não ele se
sentia culpado pela morte do amigo pois como ela lhe dissera ele sempre cuidou
bem dele e acreditava que não havia sido diferente naquela madrugada.
Infelizmente no fatídico episódio o amigo não ouvira suas palavras e acabou
tendo sua vida abreviada por sua tresloucada atitude.
Hanz abraçou o amigo pelo ombro
compadecendo-se da dor que ele sentia. Era incrível como por trás daquele
sujeito forte e de aparência truculenta havia um rapaz sensível.
- Se vocês quiserem ir para casa podem ir
Hanz, eu vou esperar a Cibele terminar o que ela tem pra fazer e mais tarde
apareço por lá. Daqui a pouco a irmã dela estará por aqui e eu estarei livre.
Tenho que ir no escritório ainda dar conta da minha falta, depois eu desço na sua
casa tá? – disse Tatiana acariciando seu rosto.
Renzo ao ver a cena cessou de derramar suas
lágrimas.
- Ué, o que tá acontecendo?
Os dois não puderam esconder seus tímidos
sorrisos envergonhados.
- Vamos indo Renzo, no caminho eu te conto
meu...
- Pô, parece que nessa noite aconteceu muita
coisa que eu não estou sabendo heim... – disse o rapaz já com um breve sorriso
em seu rosto, enxugando suas lágrimas.
Tatiana deu uma risada contida.
- Melhor vocês irem indo, mais tarde a gente
se fala.
Os
rapazes ainda passam pelo trabalho de Hanz para informar da licença médica que
ele havia recebido em virtude de seu ferimento.
- E aí fiote, tudo certo? – indagou Renzo ao
ver seu amigo entrando no carro.
- É, tudo, licença médica o babaca não pode
contestar mas você deve imaginar a cara que ele fez quando me viu entrando com
o braço enfaixado né...
- Mas ele te encheu o saco?
- Pra variar né. Perguntou assim pra mim: “e
agora, quem vai fazer o seu trabalho enquanto você fica em casa descansando?”
Porra, o que ele queria que eu fizesse? Que eu viesse trabalhar com o braço
ruim?
- Fiote, na boa, eu não sei como você não
manda ele praquele lugar e fica na boa. Com esses esquemas de computador que
você manja não precisaria ficar agüentando esses babacas, era só descolar uma
grana legal e se aposentar. Se fosse eu que entendesse desses esquemas já tinha
feito isso faz tempo... – disse Renzo já com seu carro em movimento.
- Eu sei, eu sei, mas é arriscado cara, daria
muito na vista se eu começasse a viver de brisa, sem trabalhar. Uma hora alguém
ia desconfiar, é por isso que eu não faço meu, não quero complicação pra minha
cabeça, quero viver em paz e não preocupado se a polícia vai bater em casa a
qualquer momento pra me prender por causa desses rolos.
- Tudo bem fiu, eu te entendo. Mas fica
sossegado, você vai ficar uma semana em casa, na boa, e o babaca vai ter que
engolir isso. Dane-se ele. Me fala uma coisa fiote, o delegado comentou com
você do assassinato que teve perto da faculdade?
- Ele falou comigo sim. Ele disse que pouco
antes de a polícia chegar lá um cara já tinha telefonado pra polícia falando de
uma briga de casal que estava tendo lá. O pior é que o cara disse que eles
estavam num carro igual ao do Paulo. Será que pode ter sido ele?
- Sei lá fiu, eu prefiro pensar que não, mas
pode ser né. Do jeito que ele tava era capaz de qualquer coisa. A mulher que
morreu era uma prostituta que trabalhava aqui no centro e os caras do bar que
ela trabalhava confirmaram que o carro era um Gol vermelho. É claro que aqui na
cidade não existe só um carro desses, mas depois de tudo o que aconteceu...
- É, isso tá suspeito mesmo, mas também agora
não adianta ficar pensando muito nisso, o cara já morreu mesmo, mesmo que
descubram que foi ele, vão fazer o quê né meu? O problema é que isso só reforça
mais ainda o fato de que ele estava totalmente fora de si mesmo e podia fazer
qualquer coisa.
- É, se ele foi capaz de matar a mulher ele
poderia matar qualquer um. Se o Jean não tivesse atirado nele com certeza ele
atiraria na gente. Deus sabe mesmo o que faz...
Os dois ficaram pensando nisso tudo, mas já
estavam exaustos demais de ficarem pensando só em coisas ruins e queriam
afastar esses pensamentos negativos de mortes, loucura e tudo o mais.
- Vamos almoçar lá em casa fiu? Você não tá
podendo cozinhar...
- Ah não Renzo. Valeu pelo convite, mas é que
se eu aparecer lá na sua casa sua mãe vai ficar perguntando um monte de coisas
e eu nem tô afim meu. Eu gosto dela, você sabe disso, mas hoje já tô empapuçado
de ficar respondendo perguntas, já basta o bendito delegado.
- Então vamos comer onde? Eu não sei cozinhar
não fiote...
- Ué, a gente almoça lá em casa mesmo. O
freezer tá cheio de comida congelada, é só colocar no microondas e mandar ver.
Tem lasanha lá, o que acha disso?
- Pô fiote, por que você não falou logo? Se
eu soubesse disso antes nem tinha te chamado pra ir comer lá em casa, vamo logo
então que eu tô morrendo de fome.
Hanz se divertia com o jeito do amigo e
naqueles instantes a lembrança da morte de Paulo havia desaparecido da mente
deles. Mas ainda havia muita coisa por acontecer em relação à morte de Paulo e
a dor novamente se apossaria de seus corações.
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