Vinte dias
haviam se passado após o trágico incidente na casa de Hanz, que agora tinha
presa ao seu portão uma placa de “vende-se” e um jovem casal colocava em seu
carro alguns dos últimos eletrodomésticos que ainda haviam na casa. Hanz estava
se desfazendo de tudo.
Faltavam poucas semanas para a chegada do
Natal e a mãe de Hanz não se cabia de felicidade em saber que seu filho iria
passar a data com ela, na capital.
Não só as lembranças daquela tarde em que a
morte havia se feito presente naquela casa como a do amor traído por Tatiana
eram demasiadamente perturbadoras e Hanz, a muito contragosto, decidira
mudar-se da cidade e tentar apagar definitivamente aquilo tudo de sua memória.
Quando tinha vindo morar ali imaginava
encontrar a paz que tanto procurara ao longo de sua vida. A independência, a
tranqüilidade e a paz que tanto almejara não tinham sido alcançadas ali, muito
pelo contrário, uma agitação que jamais sonhara havia tomado conta de sua vida
durante a época em que ali morou. Mas haviam momentos que jamais se esqueceria:
os dias de total solidão, a oportunidade de ter o animal de estimação que
sempre desejara e a amizade de um grande e fiel amigo, Renzo. Mas a imagem dos
corpos caídos, inclusive o da última mulher que amara, sempre estavam presentes
quando saía ao quintal, e aquilo era muito doloroso para ele.
Cibele, que havia sido instruída a tempo por Renzo,
confirmou a versão que ele e Hanz haviam dado à polícia e o caso foi dado por
encerrado pelas autoridades em pouco tempo. Ela agora passara a freqüentar um
centro espírita da cidade por indicação de Hanz, que tinha certeza de que o
espírito que flagelara Paulo também almejava fazer o mesmo com ela e já
iniciara suas atividades na tarde em que a viúva matara a amiga à sangue-frio.
Ele nada podia fazer, apesar de todo seu conhecimento sobre o tema, havia a
necessidade de que Cibele pudesse proteger-se dessa influência por si só e
apenas aprendendo a controlar sua mediunidade e com o apoio de pessoas mais bem
instruídas isso seria possível. Após uma longa conversa ele explicou-lhe tudo e
convenceu-a a ir até esse centro.
- Vou sentir saudade de você amigão... –
disse Hanz ajoelhado e afagando Brutus que lhe lambia alegremente o rosto.
- Fiote, você pode vir quando quiser, você
sabe que aqui em casa sempre vai ter um canto pra você quando precisar. Vou
cuidar direito desse cavalo aí, pode vir visitar ele quando quiser. – disse
Renzo tentando disfarçar a tristeza que sentia diante da partida do amigo e
segurando Ralf pela coleira.
- Eu sei meu, eu sei... Nunca vou esquecer
nossa amizade Renzo. Sempre que eu tiver um tempinho eu venho aqui ver como
você tá, espero que tenha juízo e que não se meta mais em confusão. – disse
Hanz se levantando.
O rapaz ainda não havia se acostumado a ver o
grandalhão emocionado. Sempre tivera a idéia, e muitos ainda têm, de que caras
grandes, musculosos, lutadores e seguranças de boate costumam ser rudes e
grosseiros. Renzo era a prova viva de que isso era mentira.
Ele via nos olhos do amigo a emoção que ele
sentia diante da despedida, emoção essa que ele era incapaz de disfarçar por
mais que tentasse. Hanz sentiu um aperto no peito...
- Tem certeza que você quer ir mesmo fiu? –
perguntou Renzo com a voz embargada.
- É melhor Renzo, tá sendo muito doloroso pra
mim continuar por aqui, você sabe, e também eu já fui transferido de volta pro
escritório da capital, minha família já está lá me esperando, não dá pra
desistir agora...
- É, não dá mesmo, e eu sei que você tá mal
pra caramba. Mas vê se não some fiu, aparece sempre pra gente trocar umas
idéias beleza? Não esquece que sei filho tá aqui comigo.
- Pode deixar meu, eu venho sim, fica
tranqüilo. Umas das poucas coisas boas que eu encontrei aqui foi sua amizade
Renzo, não vou esquecer nunca disso... E você também, leva a Bianca pra passear
lá em casa, ela vai adorar os shoppings de lá.
Os dois riram, como sempre faziam quando se
encontravam, embora dessa vez fosse Hanz quem estivesse fazendo as piadas.
- Pode deixar fiu, eu vou sim. Pena eu ter
que ir trabalhar ainda, se não a gente ia tomar nossa última cerveja...
- Não esquenta meu, ainda vamos tomar várias cervejas
juntos. Não esquece de pegar a cama lá em casa heim... – a cama era o último
móvel que havia na casa, todo o restante já tinha sido vendido e ela havia sido
dada como presente ao amigo.
- Fica sossegado fiu, eu pego sim...
Os dois ficaram mudos, em suas mentes um
rápido filme passou onde apareciam as imagens daquela amizade, desde o momento
em que se conheceram no pet shop.
Já era noite e na manhã seguinte Hanz pegaria
a estrada de volta para a capital, aquela seria a última noite que passaria na
cidade.
Os dois então se abraçaram e a emoção da
despedida fez com que lágrimas escorressem por suas faces. Não tentaram
evitá-las, não havia necessidade de esconder a emoção que a separação lhes
impunha. Eram amigos e nutriam um pelo outro o tipo de amizade que dispensa
máscaras, a amizade verdadeira.
Hanz caminhou para o portão e Renzo o
acompanhou levando pela coleira Ralf e Brutus.
- Eu já estou lendo um dos livros que você me
deu fiu, tô gostando bastante...
O rapaz se virou e deu um sorriso, estava
feliz em ver o interesse que o amigo tinha agora pelo espiritismo.
Não conseguira, infelizmente, mudar a
situação do país com as ações do grupo que formara, mas havia apresentado à
Renzo e Cibele uma nova realidade. A realidade espírita que desconheciam e
temiam e que agora enchia-lhes de esperança e curiosidade.
Eles ainda agradeciam à Deus por não terem se
complicado com as ações que haviam realizado em nome do grupo que um dia
formaram pois todos os acontecimentos contribuíram para que isso acontecesse.
Poucos dias após a tarde fatídica na casa de Hanz os dois meliantes que haviam
atacado Renzo foram encontrados mortos numa cidade próxima dali. O segredo
deles estava guardado para sempre.
Hanz acenou pela última vez ao amigo e entrou
em seu jipe preto. Ainda demorou-se em acionar o motor do veículo, por um
instante pareceu vacilar, mas finalmente o forte ronco se fez ouvir, e o
veículo partiu lentamente.
- É bichão, seu pai tá indo embora, mas logo,
logo ele volta pra ver a gente. – disse Renzo ainda com seu rosto molhado pelas
lágrimas, e olhando para Brutus.
Hanz tinha a mente vazia, evitava pensar no
amigo e no tempo que havia passado naquela cidade que tanto gostava. Não queria
pensar em nada pois já encontrava dificuldade em sair dali e temia que algum
pensamento pudesse fazer com que mudasse de idéia.
Passeou pela cidade. Percorreu a avenida onde
os jovens se encontravam, era cedo ainda e ela tinha pouco movimento. Passou
diante do Chopp do Padre, onde logo mais seu amigo estaria trabalhando; foi até
a avenida que levava à rodovia, aquela das lanchonetes, larga e arborizada que
estaria bem diferente pela manhã, quando passaria ali pela última vez, ela não
estaria tão bela como naquele horário e ele queria guardar aquela imagem que
tanto lhe causava admiração, queria apreciá-la pela última vez pois ainda
demoraria para que ele voltasse até a cidade.
Foi até o Arabian´s e comeu um lanche. A
última refeição que teria antes de partir e lembrou-se das vezes em que esteve
ali com Renzo e depois com Tatiana, quando já namoravam. Essa lembrança
tirou-lhe o apetite, as lembranças da garota ainda doíam muito.
Na verdade, procurava abreviar o tempo que
teria que passar em sua casa. Uma casa agora vazia e cujas lembranças o
torturavam mas que lhe serviria de abrigo em sua última noite.
Podia dormir em um hotel mas sentia a
necessidade de enfrentar suas amargas lembranças pela última vez, como num
último confronto, seria a última noite que passaria nela, e logo ele estava
estacionando seu carro pela última vez na garagem.
Seu amigo abrutalhado, Brutus, que sempre
fazia festa quando ele chegava, não estava ali pulando sobre ele e o quintal
mostrou-se ainda mais vazio e escuro que de costume. Seu coração ficou pequeno
e ele percebeu que para vencer aquele confronto ao qual se dispunha a encarar
ele teria que ser forte como nunca.
Adentrou a casa pela sala, também vazia e
silenciosa, e não havia a televisão para fazer-lhe companhia com o alarido que
tantas e tantas vezes ele considerara irritante. Acendeu a luz de seu quarto e
o encontrou vazio onde apenas a cama fazia-se presente. Seus olhos se encheram
de lágrimas ao recordar-se das várias vezes quando, ao passar por aquela porta,
encontrara Tatiana arrumando a cama para que fossem se deitar. Mesmo estando
claro que ela jamais o amara ele não havia conseguido ainda apagar de seu
coração o amor que sentia por ela, por mais que se esforçasse para isso.
“Eu sou burro mesmo... eu sou um burro...” –
pensou ele tristemente.
Caminhou pelos demais cômodos da casa
acendendo as luzes, a claridade fazia com que ele se sentisse menos solitário.
Chegou ao quarto onde costumava ficar seu computador e os livros que estudava,
mas tudo já estava no porta-malas de seu carro à espera da viagem, ele jamais se
livraria deles, podia dar fim em tudo menos ao seu computador e aos seus
livros. Pensou em ir até seu carro, pegar seu computador e reinstalá-lo, ele lhe faria companhia naquela noite, mas já
não tinha nenhum móvel onde pudesse colocá-lo e acabou desistindo da idéia.
Voltou então até a sala, o lugar onde por
tantas e tantas vezes havia se reunido com seus amigos alegremente e que agora
guardava somente as lembranças desses momentos que jamais esqueceria.
Decidiu finalmente deitar-se, não havia mais
nada a fazer naquela casa vazia e fria.
Na cama, antes de adormecer, Hanz aguçou seus ouvidos na tentativa de
obter algum contato com aqueles que algumas vezes o haviam visitado, mas só
conseguiu ouvir a sinfonia de grilos que estavam no quintal. Aquele som
contínuo e repetitivo parecia aumentar ainda mais a angústia que sentia.
“Tatiana, eu te amei tanto, como você pôde
fazer isso comigo? Eu imaginei que tivesse finalmente encontrado a mulher que
me acompanharia pelo resto da vida, e mais uma vez eu me enganei. Será que
algum dia eu encontrarei alguém como você, mas que me ame assim como eu a amo?”
– foi o último pensamento que ele teve antes de pegar no sono.
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